02 DE SETEMBRO DE 2017
GDI
QUANDO A FÉ PÚBLICA VIRA MÁ-FÉ MP APONTA FRAUDE DE IMPOSTOS EM TABELIONATO DA CAPITAL
27 CARTÓRIOS SÃO INVESTIGADOS por irregularidades no Estado que vão desde despesas inexistentes até desvio de dinheiro dos clientes
Cartórios existem para dar autenticidade e segurança a atos jurídicos. Têm fé pública: a palavra do poder público de que um documento é válido. Só que nem eles permanecem imunes à desconfiança. No Rio Grande do Sul, 27 tabelionatos e registros de imóveis (3,6% do total) estão sob investigação da Justiça Estadual. A maior parte por supostas irregularidades como desorganização dos livros e documentos, inobservância de prazos ou taxas cobradas acima do permitido. Mas em alguns casos há suspeita de crimes graves. Entre os quais, desvio de dinheiro dos clientes e sonegação de tributos, verificados pela reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI).
Na última segunda-feira, a 1ª Vara Federal de Santa Rosa condenou a dois anos e quatro meses de prisão um tabelião do noroeste do Estado por prestar informações falsas à Receita Federal para sonegar o Imposto de Renda (leia mais na página ao lado).
Na Região Metropolitana, três cartórios estão sob intervenção - os tabeliães foram afastados e substituídos por interinos. Em um tabelionato de Canoas, o prejuízo seria ao serviço público: as suspeitas são de invenção de despesas, salários exorbitantes pagos a familiares do tabelião, funcionários sem qualificação exigida e aluguéis indevidos. A Justiça bloqueou R$ 4,1 milhões do notário e seus parentes, para garantir possível ressarcimento de valores desviados.
Na Capital, o bolso lesado seria o dos clientes. Em um dos cartórios sob intervenção, foram apurados excessos na cobrança de taxas. No outro, a situação é mais grave: dois tabeliães foram denunciados criminalmente por embolsar dinheiro de clientes e não fazer serviços ou entregar escrituras sem valor legal. A dupla ainda teria desviado impostos (leia ao lado).
SERVIÇO ENTRE OS MAIS LUCRATIVOS DO BRASIL
Os 27 cartórios sob investigação representam parcela pequena dos 747 existentes no Estado. Inspeções costumam ser esporádicas, em grande parte movidas por denúncias de cidadãos.
Para coibir ilegalidades, dois setores do Tribunal de Justiça (TJ) têm feito vistorias sistemáticas. A Corregedoria-Geral apura relatos da população, e uma juíza, ligada à presidência da Corte, analisa prestações de contas dos cartórios. Em muitos casos, tem sido possível corrigir o problema antes que gere maiores danos.
Serviços de tabelionatos e registros notariais estão entre os mais lucrativos do Brasil. Os 10 cartórios que mais faturam no Rio Grande do Sul recebem, por ano, entre R$ 10 milhões e R$ 25 milhões, mesmo descontadas despesas como o pagamento de funcionários.
- Não há desculpa possível para um tabelião cometer crimes - resume o promotor Flávio Duarte.
Em um dos mais antigos e tradicionais cartórios do Rio Grande do Sul, o 2º Tabelionato de Notas de Porto Alegre, teria sido identificada a maior fraude registrada até hoje no serviço notarial do Estado. Conforme apuração do Ministério Público (MP) e da Corregedoria-Geral de Justiça, tabeliães que comandavam essa unidade teriam se envolvido em desvio de dinheiro de clientes e de impostos. Até o momento, o cálculo é de que o golpe tenha resultado em prejuízo de R$ 1 milhão.
Já foram identificadas 39 vítimas, mas o total de pessoas lesadas pode passar de cem. Os crimes teriam acontecido entre 2011 e 2015. Na época, esse cartório faturava cerca de R$ 1 milhão mensal. Os principais prejudicados seriam clientes que pagaram por contratos ou escrituras falsos, sem qualquer valor legal. A fraude aconteceria de três formas:
1) Documento inválido - o cartório chancelava contratos de particulares (compra de imóveis e carros, em geral), carimbava os papéis, mas não informava o poder público da existência desse negócio. Tabeliães deixariam de fazer registro no livro-tombo. Com isso, legalmente, o negócio ficava sem valor.
2) Registro inexistente: outra forma, um pouco mais sofisticada, consistiria em recolher dinheiro para registrar a venda de um imóvel (não um simples contrato, mas o registro definitivo, com matrícula). Sem que os envolvidos no negócio suspeitassem, esse registro seria falsificado, e o dinheiro, desviado.
3) Sonegação de imposto: o cartório deixaria de repassar ao poder público valores do recolhimento de taxas e impostos pagos pelos clientes, como o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).
- Eles simplesmente ficavam com o dinheiro do imposto e o município não recebia nada. Nos contratos, não davam para as partes nenhum tipo de documento ou, quando davam, era falso - resume o promotor Flávio Duarte, que liderou a investigação.
O principal envolvido era o tabelião substituto Dirceu Campos do Amaral, que morreu recentemente. Ele foi denunciado por 39 crimes, de peculato (servidor que se apropria de recursos públicos), estelionato e lavagem de dinheiro. Conforme o MP, ele teria recebido valores de pagamento de ITBI sem fazer a quitação na prefeitura, embolsando o dinheiro. Em decorrência da morte, o réu não chegou a ser julgado.
DEZENAS DE VÍTIMAS PEDEM INDENIZAÇÃO
O outro acusado é Luiz Carlos Weizenmann, que na época dos desvios era titular do 2º tabelionato. Ele assegura que não tomou parte nas ilegalidades e que afastou Amaral. Mas o MP achou assinaturas de Weizenmann em papéis invalidados e, por isso, ele foi denunciado por falsidade ideológica. Com a morte do interino, caberá a ele responder ainda a dezenas de processos com pedidos de indenização das vítimas.
O 2º Tabelionato de Notas está sob intervenção do Tribunal de Justiça (TJ). Em alguns casos, o próprio cartório está devolvendo dinheiro aos lesados e providenciando documentos autênticos. Em outros, o prejudicado teve de recorrer à Justiça.
humberto.trezzi@zerohora.com.br eduardo.matos@rdgaucha.com.br
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