segunda-feira, 25 de setembro de 2017




L. F. VERISSIMO

Traidores

Immanuel Wallerstein, um dos bons pensadores da esquerda americana, escreveu sobre a distância entre o conceito e a realidade do papel da burguesia na história do capitalismo. Segundo Wallerstein, a "traição da burguesia", quando não cumpre o papel que lhe é atribuído no que chama de mito dominante do marxismo clássico, não é uma anomalia mas uma constante. 

A realidade que desmente o conceito é que a burguesia só fez o que tinha que fazer num determinado período histórico, quando acabou com o feudalismo, e que principalmente a partir do século 19 não faz outra coisa senão frustrar os que esperavam que ela terminasse o serviço, eliminando qualquer ideia de separação entre servos e senhores hereditários.

Segundo Wallerstein, a industrialização, o progresso científico e a acumulação de riqueza não só consagraram o individualismo empreendedor como criaram novas formas de servidão. E a burguesia não revelou outra pretensão a não ser a de se aristocratizar, ou voltar ao idílico mundo dos feudos, nem que sejam só sítios com cerca eletrificada contra aldeões revoltados. 

Quando a Terceira Internacional concluiu que, em muitos casos, o proletariado precisava apressar a revolução burguesa, sem a qual a revolução socialista seria impossível, ainda se apegava ao mito. Confiava em que todos cumpririam a sua parte no processo inevitável, mesmo que alguns se atrasassem um pouco. A burguesia só traiu mesmo uma expectativa errada.

No Brasil, este cemitério de conceitos frustrados, tudo está atrasado, inclusive a desilusão com a burguesia. Esta ainda não fez nem a sua primeira entrada em cena, a julgar pela persistência do feudalismo nas nossas relações sociais, mas ainda se confia que ela desempenhará seu papel histórico, cedo ou tarde. Isso explica o sucesso entre nós das revoluções retóricas que não mudam nada e a proliferação de salvadores de ocasião virando a expectativa marxista de pernas para o ar e acreditando que a burguesia possa fazer a revolução proletária por ela. 

Vivemos numa certa confusão de atribuições desde a nossa inédita secessão em família, quando Dom Pedro declarou a nossa independência de Portugal e do seu pai. O fato de a própria aristocracia ser obrigada a fazer o papel da burguesia no nosso ato inaugural nos acostumou mal: desde então, vivemos nesta secreta esperança de que o nosso patriciado resolva todos os nossos problemas, suicidando-se.
L. F. VERISSIMO

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