12 DE SETEMBRO DE 2017
CARPINEJAR
Cachorros extraordinários
Cachorros nasceram para o abraço. Têm a vocação do abraço. É apenas olhar fixo para eles, que mexem o rabo e já saem do seu canto para procurar um carinho. Largam o sono, a quentura confortável, o luxo de um osso por um olhar. Deixam a sua preguiça por amor.
É um mero e banal olhar, que eles se sentem correspondidos. É um simples olhar, que logo disparam, pulam, procuram subir nas nossas pernas, querem brincar de escada para lamber as nossas bochechas.
Lealdade é disponibilidade. Lealdade é rotina. Por isso, os cachorros são fiéis. Eles priorizam o contato e jamais abandonam os seus afetos.
Lembro de dois cães extraordinários. O labrador amarelo do escultor Bez Batti. Fui visitar seu ateliê em Bento Gonçalves e ele mostrou onde esculpe os rostos. Na pedraria, ao longo do quintal, confessou que quem escolhe as pedras para a sua criação é o cachorro. "Ele tem intuição", me alertou. Jurei que era um chiste. Não acreditei até enxergar o seu ajudante canino carregando uma peça de granito com a boca. Quando presenciei a entrega da bruta joia mineral, que logo viraria escultura, eu concluí: cachorro tem alma. Alma é cuidar do outro como se fosse a si mesmo.
Fez sentido agora a história contada pela minha mãe. Por mais sobrenatural que parecesse. Por mais conto de fadas que soasse aos meus ouvidos de guri. Na infância, o seu cachorro Pico a levava e a buscava na escola em Guaporé, inclusive transportando a sua pequena mochila de cadernos entre os dentes.
Sempre iam os dois, chutando a geada, às 6h30min, Pico e Mariazinha uniformizados pela amizade.
Quando o relógio marcava 11h50min, Pico largava as suas tarefas de farejar o mundo e se bandeava para o colégio. Dentro de si, possuía um relógio que nunca falhava. Voltavam os dois, Pico e Mariazinha, iluminados pelo sol do almoço.
Um dia, Pico não veio, já no final do ano letivo. Minha mãe, estranhando a quebra do hábito, começou a procurar o seu cachorro. Encontrou o pequeno vira-lata gemendo no arbusto do jardim. Havia sido atropelado. Ele esperou Mariazinha para morrer. Aguardou o olhar dela, o abraço do olhar, para enfim suspirar. Só se entregou depois da mirada da menina que amava. Naquela manhã, não foi Pico que buscou a minha mãe na escola, foi a minha mãe que buscou Pico de sua vida.
carpinejar@terra.com.br
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