Traumas e finanças pessoais
RODRIGO ZEIDAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se há algo no qual brasileiros e chineses são idênticos, é no desconhecimento de estratégias eficientes de finanças pessoais.
No caso brasileiro, ainda estamos presos no modelo mental do passado hiperinflacionário. Na China, o trauma é muito mais profundo, pois a Grande Fome, fruto de políticas desastrosas do governo de Mao Tsé-Tung, matou entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas entre 1959 e 1961.
Em países que saem da pobreza em relativamente pouco tempo e no qual as pessoas são traumatizadas, é difícil que todos passem a tomar decisões racionais de finanças rapidamente. O processo de educação financeira é longo e, no meio do caminho, várias ideias erradas se tornam normais. Duas ideias ruins em ambos os países são o desprezo por liquidez e diversificação.
Uma vez entrevistei um milionário na cidade de Ningbo. Toda a sua fortuna encontrava-se em imóveis espalhados pela cidade. Ele não tinha nenhum outro investimento. Perguntei se ele não tinha medo de o preço dos imóveis despencar. Ele falou que não, que o governo chinês não deixaria isso acontecer. Haja vista que as autoridades públicas intervieram no mercado acionário em 2015, não é de surpreender que as pessoas se fiem no governo como garantidor de retornos financeiros. Mas no final das contas não faz muito sentido traçar estratégias de longo prazo no qual o governo garanta retorno em caso de queda elevada de rendimentos.
Não há bolha imobiliária na China hoje, assim como não havia no Brasil. Para que uma bolha financeira se caracterize, é necessário que agentes se alavanquem e que o estouro deixe indivíduos e empresas a descoberto. Na China e no Brasil, a maior parte das aquisições de imóveis é feita com boa parte da entrada em dinheiro, com o financiamento de longo prazo encontrando respaldo no valor dos imóveis ao longo do tempo. Ainda assim, o amor ao tijolo tanto de lá quanto de cá tem um quê de irracionalidade.
Um dos problemas das famílias chinesas é como se planejar para o longo prazo, já que elas entraram no sistema capitalista há pouco, vêm de eventos traumáticos há menos de duas gerações, como a Grande Fome, que matou dezenas de milhões no fim dos anos 1950, e o mercado financeiro não apresenta a mesma diversidade de opções como no Brasil, onde é possível comprar títulos do governo com poucos cliques.
Como fazer? Não há fórmula mágica. Planejamento de longo prazo, em finanças, significa montar uma carteira diversificada na qual investimentos líquidos (e de retorno mais baixo) convivem com investimentos especulativos, como ações e imóveis. Lá, como aqui, muitas pessoas entram em modismos de investimentos e perdem todas as suas posses. Conheço famílias que venderam seus imóveis para colocar o dinheiro no mercado acionário.
Muitos brasileiros também fizeram isso para investir em empresas como Petrobras e as do grupo X.
Uma das perguntas básicas que se deve fazer para entender finanças pessoais é: qual o padrão para uma vida financeira ideal? A resposta para essa pergunta depende de três fatores: padrão de renda, padrão de gastos e grau de aversão ao risco. A ideia principal é que um indivíduo deve viver bem durante toda a sua vida. Em um mundo financeiro ideal, as pessoas conseguiriam assumir compromissos financeiros de longo prazo de acordo com suas perspectivas de renda e seus perfis de risco. Isso é difícil de ser feito no Brasil em razão da falta de crédito de longo prazo ao consumidor. Um dos pontos importantes é definir qual o padrão adequado às expectativas futuras de renda. Mas qual o padrão de renda permanente de um indivíduo?
O ciclo financeiro ideal de indivíduo é composto de três períodos: um período no qual há mais gastos que ganhos e, portanto, deve-se fazer dívidas (sim, essa noção é estranha para muitas pessoas); aquele no qual o aumento da renda faz com que seja possível a acumulação de recursos; e, por fim, o período no qual deve haver o aproveitamento dos recursos acumulados, por meio de gastos maiores que a renda.
Esse ciclo é bastante comum em diversos países, mas no Brasil e na China ainda existe uma forte tendência a considerar que somente poupar importa, que dívidas são ruins e que todo o dinheiro acumulado deve ser entregue às gerações futuras. Existe uma grande busca por segurança ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira se ressente de falta de crédito (e do seu custo, pois afinal temos a maior taxa de juros ao consumidor do mundo).
A vida financeira ideal de uma família seria aquela na qual ela manteria o mesmo padrão durante toda a vida. Caso seguíssemos o padrão normal do ditado popular de que devemos viver de acordo com nossos meios, pouparíamos pouco e mal. Embora a estratégia financeira ideal de três momentos -no primeiro se ganha menos do que se gasta, no segundo a renda é maior que as despesas e, no final, volta-se a gastar acima da renda pelo desinvestimento do patrimônio acumulado- seja a correta, é praticamente impossível de ser colocada em prática na China e no Brasil.
Em ambos os países os traumas passados, a falta (ou excesso) de confiança e a incapacidade de se planejar para décadas na frente são o normal.
Na China, as pessoas se preparam de verdade para o longo prazo, mas não necessariamente da melhor maneira. Aqui, as pessoas põem dinheiro na poupança e em títulos de capitalização, produtos que não deveriam existir num contexto no qual títulos como o Tesouro Selic apresentam maior rendimento, sem desvantagem em relação a muitos investimentos financeiros populares.
Planejamento financeiro já é algo difícil. Em países de renda média nos quais o medo do (des)governo é palpável, tudo se torna ainda mais complicado. Tanto na China como no Brasil, o primeiro passo para o planejamento correto é olhar para o futuro, e não para o passado.
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