segunda-feira, 3 de agosto de 2015



03 de agosto de 2015 | N° 18246 
CÍNTIA MOSCOVICH

DO QUE É FEITO UM HOMEM


Fim de tarde no armazém de especialidades culinárias da Padre Chagas, no Moinhos de Vento. Como as duas vagas de estacionamento na calçada estavam ocupadas, encostei o carro junto ao meio-fio. Entrei, peguei uma cestinha e fiquei atenta, porque o rapaz que cuida da entrada do armazém chama os clientes quando é preciso manobrar.

Nem bem tinha pedido cem gramas de salaminho fatiado, quando me avisaram que era hora de manobrar e estacionar na vaga de direito.

Já na rua, vi que atrás do meu carro estava uma BMW preta, motorista ao volante. Fui uns três metros para a frente liberando a passagem e já ia dar ré para entrar na vaga da calçada, quando vi pelo retrovisor que o carrão embicou e estacionou no meu lugar. Desceu, na maior cara-dura, um senhor de seus 70 e poucos anos e que, diante do meu protesto, disse para eu estacionar naquele espacinho ali – apontava o lugar destinado a clientes em cadeira de rodas.

Claro que não estacionei ali coisa nenhuma e fiquei observando o dono de um carro que custa, por baixo, R$ 150 mil. Ele era a imagem do asseio: calça de abrigo e moletom cinza, cabelo grisalho e ralo, óculos escuros, celular e carteira na mão. Dele se poderia dizer que trabalhou a vida inteira como médico (ou advogado ou engenheiro), sempre foi bom marido, bom pai, bom avô, além de fazer doações eventuais para os necessitados e ser, por isto, muito estimado. 

Pensei que, além de caminhar no Parcão uma hora por dia, sabia comer com talheres de peixe. Imaginei, mais do que tudo, que o homem tinha noções de boas maneiras e até um senso mínimo de justiça – e que falava dessas coisas em tom professoral para seus filhos e netos.

Ao longo da vida, no entanto, deve ter sonegado impostos, mentido para levar vantagem, bancado o coitadinho e se aproveitado da boa fé alheia, embora dessas coisas ninguém mais próximo ficasse sabendo. Muitos menos ficaram sabendo, e nunca suspeitarão, que ele é capaz de roubar a vaga de estacionamento de uma mulher e de desconsiderar o espaço destinado a deficientes físicos – e que essa vocação para se achar com mais direito que os outros é sua capacidade mais essencial. Uma BMW e estacionamento pequeno: temos então a demonstração de que material um homem é feito.

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