sábado, 1 de agosto de 2015



02 de agosto de 2015 | N° 18245 
ANTONIO PRATA

Sua vez


Eu vinha voando, era como aquele banquete no final do Asterix, só que no jardim da minha avó, eu vinha planando devagarinho em direção ao javali e já estava quase dando uma dentada no glorioso pernil quando uma dedada nas costelas me fisga de volta ao mundo dos vivos: “Sua vez, sua vez, vai lá que ele tá chorando faz tempo”.

Leva a eternidade de uns dois segundos pra eu entender que não sou um gaulês vitorioso, não sei voar, não há banquete nem javali, são quatro e doze da manhã, metade das cervejas de horas atrás ainda circula no meu sangue, em forma de álcool, a outra metade já se emplasta em meus neurônios, em forma de ressaca, meu filho chora no quarto ao lado e cabe a mim tomar uma atitude.

Eis a minha atitude, tão honrosa quanto permite a situação: “Eu fui à uma!”. Do outro lado da cama, porém, vem a resposta incontornável: “Eu fui às três”. Sou eu, não resta dúvida, quem terá que deixar esta cama quentinha e sair tropeçando pela noite escura. Caso precise fazer uma mamadeira, gelarei os pés nos antárticos azulejos da cozinha. Caso precise trocar a fralda, acabarei com cocô nas mãos, nos braços e há chances nada remotas de levar um jato de xixi, no meio da testa. Tais vislumbres não me parecem ruins: eles doem.

Diante desta dor, deste frio, deste sono que vem de algum lugar entre as trevas antediluvianas e as cervejas pós-jantar, não sou mais uma pessoa boa, um pai esforçado, um filho da revolução cultural dos anos 60 que acredita em direitos iguais para homens e mulheres, sou um monstro cujo único objetivo é seguir dormindo – um Cíclope cujo olho solitário só enxerga o travesseiro.

Penso que se eu simplesmente não for, se eu virar pro lado e dormir, alguma hora, depois de pedir o divórcio, minha mulher terá de ir, mas não me parece uma boa estratégia, o divórcio. Penso em dizer “Não vou porque eu trabalho o dia inteiro pra sustentar essa família!”, mas a minha mulher também trabalha o dia inteiro pra sustentar essa família. Penso, então, em tomar coragem e agir como um homem: dizer que tô indo comprar cigarros na esquina e nunca mais voltar, mas é inútil, pois para ir comprar cigarros na esquina e nunca mais voltar eu teria que abrir mão de tudo o que me é mais precioso; esta cama, agora.

Entorpecido pelo coquetel de sono, álcool e choro de bebê, penso, nostálgico, em Bogart, em Tony Soprano, em Don Draper. Duvido que tenham trocado uma fralda, sequer. Invejo os colonizadores europeus. O exército de Gengis Khan. Os romanos e os gauleses. Homens num mundo de homens, por homens, para homens. Um mundo em que a fumaça vinha dos assados ou dos vilarejos incendiados, não dos sutiãs queimados em prol da – por quê?! Por quê?! – igualdade.

Maldito iluminismo! Maldita Inés de la Cruz! Maldita Casa de Bonecas! Maldito século 20! Maldita psicanálise! Maldita Simone de Beauvoir! Malditos filmes europeus! Maldita Virginia Woolf! Malditos hippies! Maldita Yoko! Maldita Leila Diniz! Maldito parto humanizado! Malditas peladonas de protesto! Malditas lésbicas da novela! Malditos vibradores! Malditos! Malditas!

“Vai! É a sua vez!” – e eu vou, praguejando contra a injustiça de um mundo justo, tropeçando pela noite escura.

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