03 DE OUTUBRO DE 2020
J.J. CAMARGO
JUNTANDO OS CACOS
"Eu preciso de um médico que trate a alma das pessoas! Podes me indicar alguém?"
Esta frase foi colocada logo depois do "em que posso te ajudar" quase sempre acrescido do recomendável "eu preciso saber um pouco mais, então me conte o que só contarias ao teu melhor amigo!".
Essa consulta pode ter acontecido ou, simplesmente imaginada, como introdução para discutir uma situação comum nestes tempos de rabugice coletiva, com todo mundo exasperado pelo demora do fim dessa pandemia, enquanto alguns ironizam que o pico da doença está previsto para o final de 2021, ou não. O certo é que esta experiência insólita de pânico generalizado mexeu com as pessoas de uma maneira inusitada, constrangendo os pretensos poderosos com a democratização do medo, esse sentimento que melhor define a nossa vulnerabilidade.
O confinamento desde cedo começou a cobrar seu preço, e a companhia sem tréguas dos cônjuges, privados até das novidades trazidas da rua, remexeu em mágoas represadas e estimulou um previsível acerto de contas. Muitos casamentos ruíram porque um acabou dizendo "o que precisava ser dito", e o outro, sempre tolerante, agora como um animal ferido e enjaulado, retribuiu.
Alguns, sem ânimo para dissecção de relações eternizadas pela mesmice, se deram conta do quanto estavam desorganizados e, com a morte sempre rondando por perto, ficaram chocados com a consciência de não estarem prontos.
Esses cenários resumidos aqui foram tantas vezes levados pelos pacientes aos consultórios dos médicos antigos, esses antiquados que consideram que ouvir é parte essencial da relação entre duas pessoas, mesmo quando a doença de uma delas não provoca nenhuma dor física.
A expressão de extremo descompasso afetivo justifica a demanda por divórcios, e a insegurança em relação a um futuro sem limites estabelecidos tem multiplicado o trabalho dos cartórios onde desaguam os processos dos requerentes de testamentos, pelos tipos que recém descobriram a finitude, sempre mantida distante, como se fosse uma improbabilidade.
Como as glamourosas estratégias de comunicação virtual já esgotaram seus limites de competência, ninguém mais aguenta os abraços virtuais, nem as telas do computador cheias de carinhas amorfas, olhando para lugar nenhum, e sempre alguém perguntando: "Vocês me ouvem?".
É certo que sairemos dessa pandemia mais espertos em comunicação remota, mas o retorno à vida que consideramos de fato normal vai nos encontrar muito diferentes. Quem dera, melhores, apesar de completa incerteza. Para não deixar a paciente do início desta crônica sem resposta, digo que não tenho ideia de para quem encaminhá-la, mas que pode me ligar se a solidão parecer insuportável.
Sei que vai ser difícil assimilar tantas perdas, mas confio que passar por uma experiência tão surreal também é viver. E com uma intensidade insuspeitada no nosso antigo modelo de convívio despreocupado. Historicamente, as tragédias são transformadoras, e pode ser que no fim de tudo cheguemos à conclusão de que as nossas vidas já estavam a exigir uma mudança, desde antes da doença aparecer.
Talvez o mais chocante acabe sendo o quanto demoramos a perceber esta necessidade. Então, vamos juntar os cacos e recomeçar.
Por absoluta falta de alternativas.
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