quinta-feira, 1 de outubro de 2020


01 DE OUTUBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

TOCANDO A BOIADA

É espantoso que o governo Bolsonaro, mesmo depois de todos os desgastes e alertas pelas queimadas e críticas internas e externas pela leniência com o desmatamento, prossiga com a mesma convicção e desenvoltura para levar adiante propostas que produzem ultrajes dentro e fora do país. O mais recente episódio dessa determinação que parece inabalável foi a reunião do desfigurado Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), comandado pelo ministro Ricardo Salles, que decidiu revogar normas protetivas para áreas de restinga e manguezais do litoral brasileiro, eliminar a necessidade de licença para projetos de irrigação e ainda permitir a queima de embalagens de agrotóxicos em fornos industriais. É fato que há no país um cipoal de regras e normas burocráticas inúteis ou impossíveis de serem cumpridas e deveriam ser revisadas ou extintas, mas não é o caso em questão.

A iniciativa mais danosa sem dúvida é a que ameaça as áreas da costa que são ecossistemas cruciais para a vida marinha e a subsistência de milhares de ribeirinhos e passariam a ficar à mercê de projetos imobiliários ou da ocupação desenfreada por atividades com pouca preocupação ambiental. Felizmente a deliberação foi suspensa um dia depois por uma liminar da Justiça Federal do Rio de Janeiro. Além da direção errada no mérito, era óbvio, como manifestou a própria representante do Ministério Público Federal na reunião, que as deliberações, legalmente questionáveis, acabariam nos tribunais. Outro problema, alertou o secretário do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, Artur Lemos, também participante do encontro virtual, é o risco de se criar uma espécie de guerra entre Estados na atração de investimentos, conforme legislações locais mais ou menos restritivas, algo semelhante à disputa que existe hoje no âmbito fiscal.

Como mostraram as imagens da grotesca reunião do dia 22 de abril, o ministro Salles, do Meio Ambiente, não desperdiça chance de, como ele mesmo disse, "passar a boiada" quando quer colocar em prática o que parece ser um planejamento consciente de desmonte de regras de preservação, supostamente em nome do desenvolvimento. Na realidade, Salles é apenas o peão a tocar a tropa, operacionalizando uma política caolha e atrasada em temas ambientais ao mando de seu mentor, Jair Bolsonaro. Surpreende que o presidente continue sem compreender que preservação e economia não são excludentes. Pelo contrário. A visão moderna do capitalismo cada vez valoriza mais iniciativas e empresas que estão afinadas com as melhores práticas ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês).

A situação no Brasil, motivo de angústia e perplexidade internacional, foi citada até no debate entre os candidatos à Presidência dos EUA, na terça-feira à noite. O democrata Joe Biden chamou a atenção para a destruição das florestas tropicais brasileiras e chegou a citar a possibilidade de se reunir com outros países para alcançar ao governo um montante de US$ 20 bilhões para apoiar políticas de preservação. O quadro, portanto, parece cada vez mais grave e motivo de inquietação mundo afora. Menos mal que, como foi o caso de uma das resoluções do Conama, as medidas destrutivas tendem a ser barradas pelo Judiciário ou pelo Congresso.

Com sua visão canhestra, Bolsonaro prova não ter juízo e discernimento ao reiteradamente promover e insuflar ações prejudiciais aos interesses econômicos do próprio Brasil e que põem em risco gerações futuras. Cabe então às demais instituições colocar um freio na desconsideração do presidente pela saúde dos ecossistemas nacionais e nas atitudes que consolidam o governo federal como um pária ambiental do planeta, desgastando cada vez mais a imagem do país e prejudicando quem nada tem a ver com a destruição em curso.

 

Nenhum comentário: