segunda-feira, 16 de setembro de 2019



16 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Billy viu um fantasma


Billy Joel não acredita em Deus, mas acredita em fantasmas. Mais até: já viu um. Uma noite, ele estava na mansão que havia mandado construir nos anos 1980, em Long Island, quando deparou com uma estranha mulher vestida com roupas do século 19, sentada ao tocador, penteando os cabelos.

Cruz credo, te esconjuro!

Não é a primeira vez que leio ou ouço relatos de mulheres fantasmas que penteiam os cabelos, o que me leva a crer que a vaidade feminina é eterna.

Talvez por ter se incomodado com a aparição, Billy Joel vendeu sua casa assombrada para o comediante Jerry Seinfeld, que, provavelmente, não sabia nada sobre essas ocorrências sobrenaturais, ou não teria investido US$ 32 milhões no negócio. Seinfeld ainda vive lá, com a mulher, três filhos, cachorros, gatos e o espírito penteador.

E Billy Joel, para onde foi? Não sei. Mas no sábado ele esteve aqui, em Boston, e nós fomos vê-lo cantar no Fenway Park, o estádio dos Red Sox. Esse estádio é histórico, tem mais de cem anos, e é rodeado de bares, restaurantes e casas de shows. O lugar está sempre cheio de gente passeando, bebendo cerveja, comendo cachorro-quente, em permanente estado de quermesse.

Nessa noite, o estádio lotou completamente, inclusive embaixo, no campo. Mais de 40 mil pessoas. Fiquei surpreso com a popularidade de Billy Joel. Afinal, o cara não produz um disco novo há mais de 25 anos. Eu, inclusive, as músicas que mais gosto dele são duas baladas dos anos 1970: Just Way You Are e Honesty. Cara, desempenhei muito ao som dessas músicas, nas reuniões dançantes. E não é que ele NÃO CANTOU nenhuma delas no sábado?! Só não pedi o dinheiro de volta porque, ainda assim, o show foi ótimo. Billy Joel é muito simpático, gozador e eclético: ele cantou até músicas dos Beatles.

Mas o que realmente me leva a escrever sobre o show não é nenhuma das músicas de Billy Joel. Foi algo inesperado que aconteceu. Em meio à apresentação, um dos músicos da banda caminhou para o centro do palco e tomou o microfone. Billy Joel continuou ao piano. Então, o músico, de quem não sei nem o nome, começou a cantar um trecho de uma famosa ópera de Puccini. É uma ária chamada Nessun Dorma, ou "Ninguém Dorme", tornada célebre pelas interpretações primeiro de Caruso e depois de Pavarotti, caindo finalmente no gosto popular.

Agora tente imaginar a cena: um músico praticamente anônimo canta um pedaço de ópera em italiano para uma plateia de 40 mil americanos que estão lá para ouvir um velho roqueiro de Nova York. Impensável, não é? Pois foi o momento mais emocionante da noite! Quando ele terminou, as pessoas urravam de excitação e uma moça que estava perto de mim tinha os olhos rasos d?água. Eu mesmo experimentei no peito a força daqueles poucos minutos e perdi a respiração e tentei entender o que era aquilo, e entendi: nós estávamos sob o poder da beleza de uma obra imortal. Todas as músicas que Billy Joel cantou foram bonitas, mas aquela rápida interpretação da ária de Puccini trouxe um sentimento antigo e universal: a fascinação pelo gênio humano.

Quando você está diante de uma criação superior, uma escultura de Michelângelo, uma pintura de Monet, o fecho de um romance de Dostoiévski, quando você depara com algo de sublime que o homem produziu, você, mesmo que não compreenda do que se trata, é acometido por essa perturbação de encantamento. É a reverência pelo que excede a capacidade dos mortais comuns. Giacomo Puccini conseguiu essa façanha em meio a um show de rock?n?roll.

Que glória. Mas ainda fiquei irritado porque o Billy Joel não cantou as minhas preferidas.

DAVID COIMBRA

Nenhum comentário: