sábado, 4 de novembro de 2023


04 DE NOVEMBRO DE 2023
J.J. CAMARGO

Por que fugimos do paciente terminal?

Temos dificuldade de lidar com a morte mesmo quando encerra um sofrimento sem redenção. "Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o sono da morte compensa." (Clarice Lispector)

Quase todas as pessoas com quem conversei sobre o tema assumiram que têm dificuldade de conviver com o clima que envolve o fim da vida. Certamente é a mais pesada das relações sociais, o que justifica que todos se sintam aliviados quando há uma desculpa plausível para se omitirem.

Alguns conseguem até elaborar com bom humor esta situação, ainda que pareça muito improvável. Em todo caso, Woody Allen conseguiu: "Eu não tenho medo de morrer. Eu só não gostaria de estar lá quando isso acontecer".

De qualquer modo, apesar de inevitável, nunca nos sentiremos relaxados, mesmo quando a morte significar o fim de um sofrimento sem redenção. Nem a família, que representa a companhia mais valiosa no fim da vida, tem um comportamento uniforme nesta situação.

Tanto que, quando um paciente terminal está internado, é comum a pressão familiar para que ele seja levado para a UTI, apesar da irracionalidade desse pedido, visto que a terapia intensiva é um lugar ótimo para se lutar pela vida, enquanto haja esperança de sobreviver com dignidade, mas desumano e terrível para quem tem consciência de que está no umbral da morte. Condenar um paciente ainda lúcido a morrer rodeado de máquinas barulhentas e pessoas emocionalmente descomprometidas é crueldade pura.

Infelizmente, esta dificuldade não ocorre somente com leigos. Muitos médicos agem assim, em grande parte devido à falta de orientação na faculdade, onde somos treinados para diagnósticos brilhantes e tratamentos exitosos, ou seja, para a grande festa da vida. Condicionados ao sucesso, não estamos preparados para a única intercorrência que aprendemos a protelar, mas não a banir, quando chegamos ao portal do fim da vida, apesar do quanto gostaríamos de transferi-la, mesmo que fosse por apenas um dia.

Como me ensinou a Marilu, quando lhe perguntei como tinha sido a noite: "Foi sobressaltada, porque eu tenho sonhado muito com a minha própria morte, e neste sonho eu sempre morro à noite. E então foi um alívio quando começou a clarear, e eu soube que eu tinha ganho, pelo menos, mais um amanhecer".

Com a morte sempre rondando, a negação é um modesto antídoto para o desespero.

A analogia da proximidade da morte com um muro é perfeita, porque compara o morrer com deparar-se com um obstáculo intransponível, depois de uma caminhada que sempre pretendemos que seja a mais longa possível. Porque viver, para quem encontrou o sentido da vida, é tão maravilhoso, que mesmo os sofredores lutam para preservá-la no limite do possível.

Diante de uma barreira final, tão alta que não conseguimos transpô-la, e tão longa que não temos mais pernas para contorná-la, o médico, além de abandonar seu discurso tradicionalmente esperançoso que pareceria ridículo, deve se oferecer para ajudar o paciente a resgatar os afetos atropelados durante a vida, na busca do único sentimento que, exorcizando a culpa, lhe permitirá morrer em paz: o perdão. E não negligenciem esta ajuda, porque raramente descobrimo-nos prontos. Sempre há uma aresta para aparar.

J.J. CAMARGO

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