03 DE DEZEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA
O peru perdoado
Nem sabia que existia peru branco. Existe. Vi fotos de dois deles, com as penas inteira e imaculadamente brancas, instalados em uma luxuosa suíte do The Willard, famoso hotel cinco estrelas de Washington. Eram dois perus grandes, do tamanho de um fogão de quatro bocas, bonitos até o ponto em que um peru pode ser bonito. Cada um estava refestelado em uma cama king size do hotel, eles se olhavam com interesse e pareciam conversar algo na língua dos perus.
Mas, afinal, o que é que dois perus estavam fazendo numa caríssima suíte de um hotel da capital dos Estados Unidos?
É que essa foi uma cena da semana passada, a semana do Thanksgiving, o Dia de Ação de Graças, maior feriado americano, mais importante até do que o Natal e o Dia da Independência. Esse é o único dia do ano em que o comércio fecha. Nos demais, inclusive sábados, domingos e feriados, o comércio está sempre aberto, movimentando as cidades, levando gente às ruas, fazendo a roda do desenvolvimento girar. Para os americanos, é incompreensível a ideia de o Estado regular o horário em que uma loja fica aberta.
No Thanksgiving, como se sabe, come-se peru. Milhões de perus são executados, depenados, temperados e levados ao forno. Todo mundo por aqui come peru, nesse dia. Menos eu. Se puder escolher, como outra coisa, porque não sou um apreciador de aves na culinária. Gosto das aves voando, livres, no céu. Ou ciscando no chão e botando ovos, como fazem as galinhas.
Mas, voltando aos perus no hotel, eles estavam lá porque eram bichos, digamos, alegóricos. Um dos dois receberia o perdão presidencial no dia do Thanksgiving. Ou seja: o peru perdoado não iria para a panela. Continuaria vivo e bem cuidado até a velhice. Trata-se de uma curiosa tradição americana que vem desde os anos 40, quando o presidente Truman anistiou o primeiro peru.
Era aí que eu queria chegar desde ontem. Porque é surpreendente a forma devotada como os americanos cultivam suas tradições. Esse é o país da tecnologia e da ciência, é o campeão do capitalismo e da inovação, um país formado por imigrantes, que recebe todos os dias milhares de pessoas vindas de outras culturas. Mas é, também, um país que preserva seus hábitos como se fosse uma cidadezinha interiorana, isolada do mundo. As cerimônias de datas como o Thanksgiving, o Dia da Independência e o Halloween são repetidas todos os anos da mesma maneira e com o mesmo entusiasmo. Até o presidente da República se submete a ritos esquisitos, como o do perdão público ao peru.
Nós, no Brasil, temos datas regionais, mas o único evento típico que mobiliza a nação inteira é o Carnaval, e ainda assim a comemoração é diferente em cada parte do país.
De onde vem o nosso desprezo pelas liturgias e a nossa iconoclastia?
Do nosso cinismo.
Para nós, o que não possui valor prático, direto e material não tem sentido. O que é simbólico é menor, porque não pode ser auferido, nem depositado no banco. É mais difícil construir uma sociedade justa assim, porque uma nação não se faz com posses; se faz com ideias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário