
09 de Julho de 2025
CARPINEJAR
Uma vida desfeita numa mochila
Um morador encontrou mochila com um recém-nascido num terreno baldio em São Borja (RS), na segunda-feira. Estranhou o peso, abriu o zíper - e teve a visão do inferno, de desesperadora indiferença.
Era uma menina. Ainda mantinha parte do cordão umbilical. Em vez de um colo, em vez de um berço, o corpinho estava fechado numa mochila.
O símbolo de um estudante, para carregar livros e cadernos, para aprender a ler e escrever, para crescer e ser alguém, foi usado como caixão, numa inversão macabra das expectativas.
A polícia tenta identificar os responsáveis e esclarecer se a pequena estava viva antes de ser desovada.
Lembro que notícia semelhante me marcou, no inverno do ano passado (24/6), em Canoas (RS). Um funcionário de limpeza de prédio comercial localizou um bebê morto dentro de uma lixeira, enrolado numa manta, no formol do descaso. Tinha apenas um dia de vida.
O que está acontecendo?
Espera-se a criança nascer para matá-la, respirar para extingui-la, vir à tona para soterrá-la em definitivo, ter esperança para suprimi-la. Há muito não é um feto.
São nove meses de espera para algumas horas de extermínio, de tortura no frio, de padecimento assistido. O nascimento sequer teve tempo de se tornar aniversário, com o falecimento inscrito para sempre na lápide na mesma data do parto.
Os rebentos são descartados como se fossem objetos estragados, defeituosos. Que mundo é este, em que bonecas reborn são tratadas como bebês de verdade - e bebês de verdade são jogados fora como bonecas?
Vivemos uma era em que a infância inanimada é celebrada em comerciais, nas redes sociais, em quartinhos instagramáveis, mas os filhos de carne e osso, com seus problemas e necessidades, dependentes de criação e de assistência permanente, continuam sendo ignorados. É fácil idealizar, difícil é cuidar do que é real. Talvez estejamos todos fingindo que não vemos essa maiúscula discrepância.
O infanticídio bizarro revela o fim do sentimento de zelo, de empatia, de respeito.
Por que não incentivamos a adoção, com menos burocracia?
O abandono de um recém-nascido, essa monstruosidade injustificável, não começa no momento em que ele é deixado perversamente numa mochila, numa mala, numa sacola, num contêiner, mas quando a gestante não tem com quem contar, na ausência de rede, de escuta, de acolhimento. É um atalho brutal de uma longa negligência social, da desestruturação das famílias.
Estamos nos convertendo, patologicamente, numa sociedade que tolera o insuportável, que silencia diante do descuramento, que não repara mais os lares desfeitos e apenas se detém nos crimes consumados.
O nascimento, que deveria ser um grito de vida, vem sendo um estertor cada vez mais abafado.
Os atos de crueldade não representam exceções, mas alertas consecutivos, sinais da banalização completa do sofrimento.
Uma mochila nunca mais será só uma mochila. _
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