
Estado traumatizado
Subestimamos os efeitos da enchente de maio do ano passado, o maior desastre ambiental da história gaúcha, que cobriu mais de 90% do Estado, atingiu 478 dos 497 municípios e deixou um rastro de destruição sem precedentes: mais de meio milhão de desabrigados, 183 mortos e 27 desaparecidos.
Houve uma devastação mental que começa a mostrar suas consequências agora, na violência social e na desestruturação dos lares. Não existiu uma campanha constante de socorro psicológico, de amparo às vítimas. O cuidado se restringiu aos epicentros das calamidades.
Trauma não se desfaz da noite para o dia: permanece por décadas. Mal tínhamos saído do lockdown provocado pela covid-19, um isolamento que durou de março de 2020 até meados de 2021.
Contando com as cheias, foram três anos, dos últimos cinco, marcados por falências, quebradeira comercial, desalojamento, ruína financeira. Ninguém aguenta tantos revezes. De repente, você perde o emprego com a pandemia e, em seguida, perde a casa com a inundação.
Isso explica a inadimplência gigante no Rio Grande do Sul: 41,66% da população sobrevive com as contas atrasadas. Quase metade do Estado. Não nos recuperamos dos tombos. Mais de 3,5 milhões de gaúchos estão inadimplentes, com R$ 22 bilhões em dívidas - o equivalente a 3,11% do nosso PIB.
Encostamos na inadimplência nacional, de 46,6%. E logo nós, reconhecidos como uma região próspera e turística. As pendências mais comuns são com bancos e financeiras. O valor médio por devedor corresponde a R$ 6 mil.
Se a base salarial no Estado, de acordo com o IBGE, fechou 2024 em R$ 3.698 - com picos de R$ 3.528 em fevereiro e recuo para R$ 3.408 em abril de 2025, segundo o IPEA -, deve-se o dobro do que se ganha, numa bola de neve interminável de juros. O peso de não ter como se sustentar vai gerando desilusão, desespero, doenças e truculência pela casa.
Sem alternativas, com a figura masculina em crise (avessa à mudança de papéis, intolerante ao divórcio, ainda querendo ser provedora de tudo e defendendo a visão retrógrada da manutenção dos laços pela dependência), as retaliações recaem sobre os mais próximos, em especial mulheres e crianças. Investe-se contra a parcela da sociedade que mais sofre de preconceito, reproduzindo misoginia e infanticídio.
Assim, o RS virou uma fábrica de tragédias. Jamais testemunhamos tal profusão de crimes hediondos. Não me recordo de um período tão nefasto de manchetes.
Entre janeiro e junho deste ano, o Estado registrou o recorde de 36 feminicídios e 134 tentativas, conforme dados do Observatório da Violência contra a Mulher da Secretaria da Segurança Pública. De janeiro a maio deste ano, 37 pequenos foram assassinados de forma violenta. A cada 24 horas, uma criança é vítima de maus-tratos.
Não tem como não perceber que algo está fora da ordem. São dois atentados consecutivos em escolas: Caxias do Sul e Estação. É uma mochila com recém-nascido morto. É uma amiga que roubou um bebê do ventre.
É uma esposa que envenenou a família inteira do marido com bolo. É uma filha que incinerou o pai e a madrasta na churrasqueira. É um pai que jogou o filho de cinco anos de uma ponte para se vingar da ex-companheira.
É um comerciante que violentou e manteve uma menina de nove anos em cativeiro. Repare nos lados: o nosso dentro está visivelmente, profundamente adoecido. Precisamos de ajuda. O quanto antes. _
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