quinta-feira, 5 de junho de 2025


05 de Junho de 2025
CARPINEJAR

Uma linha na tela me deixando obsessivo

Como a vida moderna é ilusória. Minha televisão de 50 polegadas, mais fina do que uma tábua de passar, começou a apresentar uma listra preta. Todos os programas, jogos de futebol e séries aos quais assisto exibem uma linha no meio. Fixa e de traçado impecável, como se tivesse sido feita com régua.

Difícil não reparar. É como usar, no trabalho, um terno com mancha ou uma camisa sem o botão de cima - um colega vai notar uma hora. Você sabe que ela existe. Sabe que sempre estará ali, zombando da sua imperfeição.

Minha esposa finge que não é importante, que não é nada, que nem dá para ver. - Só aparece nas cenas claras.

Meu coração amolece por Beatriz quando ela tenta mentir para me agradar ou para não gastar à toa. Noto seu esforço cênico para me desviar de alguma obsessão. Seu faro apurado por longo matrimônio já sentiu: eu não vou mais relaxar, isso será o assunto do mês enquanto não se resolver.

Não consigo mesmo me desligar. Já li relatos de consumidores dizendo que a situação vai piorar, surgirão mais falhas no painel, formando um triângulo equilátero - para a inveja do escaleno e do isósceles. É questão de tempo até o eletroeletrônico pifar por completo.

Só trocando a tela. Trata-se de uma doença incurável, que entrou nos cuidados paliativos. Arrumar custará quase o valor de uma nova TV. Não me resta alternativa senão pesquisar e arrebatar outra.

É óbvio que vou procurar uma de 60, de 70, de 85, de 100 polegadas. O tamanho é recalque para compensar sua brevidade.

A minha atual durou cinco anos. A linha revela que os componentes internos da tela estão desgastados ou com defeito. Fiquei com saudade das televisões de antigamente, com cheiro de válvulas aquecidas. Menores, sem controle remoto, com botão giratório e aquele som de "tec" ao ligar, mas que tinham antena para nos salvar do chuvisco ou dos riscos horizontais.

No desespero, a gente batia nelas quando a imagem tremia, e elas voltavam. Ou usávamos bombril na antena interna, movendo os tentáculos lentamente, como quem busca acertar o sinal.

Isso quando a transmissão não fugia de vez, e alguém precisava subir no telhado para mexer na antena externa, seguindo orientações aos gritos de quem permanecia na frente do aparelho. Naquela época, a fé era caseira.Apesar dos perrengues, os televisores persistiam por décadas. Mantinham soluções, sobreviviam com os reparos.

Diante de qualquer problema insolúvel, levava-se a TV ao conserto da esquina. O técnico abria a caixa com a perícia de quem lidava com um rádio antigo, armado de chave de fenda e paciência. Demorava de três a quatro dias para a alegria retornar à plateia do sofá - e cada dia se arrastava numa ansiedade febril e expectativa milenar.

Então retomávamos o início: as televisões sempre ressuscitavam. Viviam ressuscitando e prolongando seus aniversários úteis.

Acreditávamos em milagres. _

CARPINEJAR

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