sábado, 20 de julho de 2019



20 DE JULHO DE 2019
JJ CAMARGO

A delicadeza no sucesso pode ser falsa

Alcançar a condição de socialmente agradável é um dos mais complexos e penosos exercícios civilizatórios.

Provavelmente nada é mais ingênuo do que se referir a alguém como estando muito mudado. Como se fosse possível. Porque o máximo que conseguimos é tentar refrear a resposta impulsiva, capaz de revelar como de fato somos. E isso às custas da sempre dolorosa contensão dos ímpetos, ou seja, do abafamento das chispas do nosso núcleo duro, através do processo difícil e infindável da educação continuada.

Alcançar a condição de socialmente agradável é um dos mais complexos e penosos exercícios civilizatórios, porque exige doses indispensáveis de sensibilidade, inteligência, empatia, amabilidade e hipocrisia. Não a hipocrisia ostensiva que agride, mas aquela sutil que bloqueia a exposição da supersinceridade, esta, sim, absolutamente incompatível com o convívio social sofisticado. Não bastasse o trabalho para se disponibilizar todos esses atributos, ainda há que mantê-los ativados, o que multiplica a dificuldade, dada a frequência com que, por distração ou cansaço, sem querer, deixamos transparecer o que preferíamos ocultar.

Isso ocorre bastante na sala de cirurgia, um cenário clássico onde desfilam os auxiliares sempre relaxados para debater os lançamentos da Netflix, e o chefe, mais concentrado, menos tolerante a ruídos paralelos, e por uma curiosa razão biológica, com mais calor.

Na minha experiência, essa situação, de responsabilidades heterogêneas, é um verdadeiro laboratório de comportamento humano, porque o humor naturalmente oscila à medida que o procedimento avança, as escolhas são feitas, e espera-se que as melhores decisões sejam facilitadas pela calejada carreira do cirurgião, para afinal se alcançar o estágio recreativo, quando a sala fica mais ruidosa e a temperatura ambiente mais agradável. 

Pois é exatamente neste percurso de exigências variadas e imprevisíveis que algumas vezes deixamos de aparentar e, completamente desprotegidos, somos. Essa hora pode ser cruel com os falsos gentis que, sob tensão inesperada, esquecem de segurar a máscara da gentileza que, despencando, os revela toscos e primitivos.

Na Clínica Mayo, convivi com o professor Spencer Payne, um dos maiores cirurgiões torácicos americanos do século 20, um modelo de objetividade técnica e de serenidade no campo cirúrgico, que me propus a imitar - e foi uma pena que não tenha conseguido. Contrariando a tendência de ser cordial quando tudo está bem e agressivo quando não, ele parecia mais gentil durante as complicações. E impressionava o quanto a espontaneidade da gentileza sob tensão era o requinte de uma personalidade naturalmente afável e doce.

Em uma manhã de sábado, reoperamos um menino de sete anos, e a abertura do tórax confirmou que falhara a última tentativa cirúrgica de substituição do esôfago queimado por soda cáustica, e enquanto eu pensava que esbravejaria naquela situação desesperadora, ele agradecia todos os pequenos gestos dos auxiliares e fechou a pele até o último ponto, o que usualmente era tarefa dos residentes. Compadecido pelo sofrimento do mestre, que dias antes comentara o quanto gostava daquele menino, encontrei-o no vestiário com olhos vermelhos, e no afã de confortá-lo disse que tinha ido para a Clínica Mayo por causa dele, e que agora, quando voltasse para o Brasil, eu poderia contar que tinha descoberto um Spencer Payne ainda melhor do que aquele encantava o mundo nos livros e congressos. Dois latinos teriam se abraçado, mas ele ao menos assoou o nariz antes de dizer:

- Nós erramos muito. A única coisa que pode nos redimir é deixar que os outros percebam o quanto sofremos com isso.

A delicadeza no sucesso pode ser falsa, sim. No fracasso, não.

JJ CAMARGO

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