sábado, 20 de julho de 2019



20 DE JULHO DE 2019
REPORTAGEM

FRUSTRAÇÃO EM PORTUGAL

A avalanche de brasileiros tentando a sorte na pátria mãe inclui alguns bem-sucedidos e muitos que, após um período de decepções, têm de fazer as malas para voltar. um ano após percorrer o país conversando com gaúchos que se instalaram por lá, ZH ouve quem foi mas se viu forçado a retornar
"Aluguéis caríssimos, subempregos, xenofobia. Sim, brasileiros sofrem muito com xenofobia aqui em Lisboa! Portugal é lindo, maravilhoso para quem tem dinheiro e para quem vem turistar, mas para trabalhar... Está cada vez mais escravidão!", lamenta uma mulher. "Estou indo embora na próxima semana. 

Motivos? Muitos! Salário mínimo muito baixo, aluguel superalto, impostos nas alturas. Só gastei dinheiro com a minha cidadania portuguesa para nada. Uma grande ilusão! Muitos brasileiros têm vergonha de dizer a verdade... Vergonha de falar que a vida não é fácil", comenta outra. "A maioria das pessoas pinta o quadro mais bonito do que ele realmente é. Portugal é um país tranquilo para se viver, mas não é fácil como todos dizem, escrevem e postam", define um terceiro participante da discussão.

Os comentários constam da página Portugal que Ninguém Conta, grupo com quase 65 mil membros que são convidados a compartilhar suas histórias e impressões sobre o país que virou moda entre brasileiros nos últimos anos, atraindo uma multidão de aspirantes a uma nova vida na Europa - porta pela qual, atualmente, parece ser mais fácil entrar. "A intenção, em momento nenhum, é desmoralizar Portugal, e sim mostrar que emigrar não é tão fácil como dizem", lê-se na descrição da comunidade virtual.

Números comprovam o que facilmente se percebe no dia a dia: não é preciso procurar muito para localizar alguém que conhece alguém que desistiu da vida no Brasil e resolveu tentar a sorte, com mais ou menos recursos e planejamento, do outro lado do Oceano Atlântico. Os brasileiros continuavam compondo, em 2018, a maior comunidade estrangeira residente no pequeno país ibérico, com um total de 105.423 pessoas, número que representa um salto de 23,4% em relação a 2017, de acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Trata-se do índice mais elevado desde 2012. Não entram nessa soma cidadãos com dupla cidadania ou em situação irregular.

O Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração (ARVoRe) da Organização Internacional para as Migrações (OIM), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), informa que 353 brasileiros - de 616 inscritos - receberam auxílio em dinheiro para voltar ao Brasil no ano passado, o que corresponde a 93% do total de indivíduos amparados pela agência no período. 

É o maior número de migrantes do Brasil ajudados desde 2013. Em 2019, até o final de maio, a OIM contabilizou 282 migrantes interessados, sendo 254 deles (90%) brasileiros. Em junho, 13 brasileiros regressaram. As estatísticas também mostram que a expectativa pode se transformar em inesperado pesadelo logo no desembarque: em 2018, 76,3% dos viajantes barrados (2.866) na tentativa de entrar em Portugal eram brasileiros, mais do que o dobro (114,5%) dos rejeitados no ano anterior, segundo o SEF.

Em julho de 2018, depois de percorrer 1,2 mil quilômetros do território lusitano, visitando cidades de Norte a Sul, ZH publicou reportagem com histórias de gaúchos que se arriscaram a encarar o desafio da mudança, narrando dificuldades, sucessos e aprendizados em uma nação que assistia à quarta grande onda migratória contemporânea de brasileiros, motivada pela acentuação da crise econômica e política do lado de cá e pela melhora das perspectivas por lá. Um ano depois, procuramos pessoas que desistiram do idílio português ou que, frente a enormes obstáculos, quase começaram a preparar as malas para o regresso ao Rio Grande do Sul.

Fabiano Luis Knopp, 43 anos, de Caxias do Sul, viveu em Lisboa entre abril e outubro do ano passado. Realizava, na maturidade, o sonho juvenil de morar no Exterior, adiado quando se tornou pai aos 25 anos. Fotógrafo, Knopp sabia do grande número de colegas brasileiros que exerciam a profissão em Portugal. Com a oferta de auxílio de um conhecido, resolveu se aventurar.

- Fui com a intenção de não voltar tão cedo, ou melhor, voltar apenas para visitar - recorda.

O começo pareceu promissor. Knopp se hospedou na casa de amigos brasileiros. Ao pé do Cais do Sodré, na margem sul da capital, admirava uma vista incrível do Rio Tejo e da Ponte 25 de Abril, com diminutos barcos de pesca misturados a gigantescos cruzeiros. Passadas duas semanas, abraçou o primeiro trabalho, fotografando um casamento. Pesquisou preços e apresentou, na ânsia de ser aceito, um orçamento de 250 euros, baixo para os padrões locais, que foi aprovado pelos noivos. "Nossa! Comecei muito, mas muito bem", pensou. A realidade logo se provaria bem mais árdua. Knopp teve de procurar outro endereço, além de uma colocação na área de restauração, que é como os portugueses se referem ao ramo de restaurantes e alimentação, uma vez que os trabalhos de foto sumiram. Encontrou emprego em um ponto tradicional da Praça das Flores. No início do verão, época repleta de turistas, preparava sanduíches, sucos e cafés, lavava a louça, limpava o chão e os banheiros, pela manhã e à tarde.

- Tinha que ser tudo muito rápido, pois português não tem muita paciência. Falamos o mesmo idioma, mas as diferenças são grandes no vocabulário, na cultura e nos costumes. Não foi nada fácil.

Quando passou para o turno da noite, a correria aumentou. Seu horário, oficialmente, era das 14h à meia-noite, mas, em geral, deixava o serviço de madrugada, chegando em casa somente às 2h30min. Dependia de ônibus - ou caminhava 40 minutos - e barco. Dispunha de apenas uma folga semanal, e os intervalos para o jantar eram de 30 minutos. No restante do tempo, Knopp ficava de pé. O ritmo era frenético.

- Eu estava me acabando - resume.

Decidiu largar o posto e começou na telentrega de comida. Não pagava pelo aluguel da moto, mas deixava 50% do que ganhava com o dono do veículo. Sobrava quase nada. A situação foi piorando. O caxiense dividiu moradia com outras quatro pessoas, dormindo em um sofá na sala. Trabalhou também em uma churrascaria, onde, com o fogo a pleno, a temperatura sufocava aos 47ºC no verão. Cumpriu turnos de até 16 horas de trabalho. O fotógrafo lembra de um dia em que, durante o almoço, o assunto da mesa eram o Brasil e os brasileiros.

- E tu, zuca (diminutivo de "brasuca"), o que acha dos brasileiros? - questionou um português.

Até então comendo em silêncio, Knopp, cansado das comparações, despejou:

- Há brasileiros e brasileiros, assim como portugueses e portugueses. É uma questão de cultura, é o sujo falando do mal lavado. Não podemos nunca generalizar.

Em 12 de agosto, domingo em que era celebrado o Dia dos Pais na terra natal, Knopp foi dispensado. Por mais esgotado que se sentisse, o fotógrafo lamentou perder o mínimo de estabilidade que conseguira até então, focando na promessa de que lhe seria dado um contrato de trabalho, o que o auxiliaria a permanecer legalmente em Portugal. Do pouco dinheiro que recebeu, emprestou uma quantia para um conhecido, que até hoje lhe deve. Ao retomar a função como motoboy, decidiu voltar para o Brasil.

- Pesei muito, falei com minha família e fiz uma coisa da qual talvez hoje me arrependa, mas, no meio do furacão, sozinho e sem ninguém, cabeça cheia, preocupado, nervoso, pois os dias foram passando... Minha última saída foi vender meu equipamento de fotografia para voltar - narra, ainda pesaroso por ter tido de abrir mão da câmera e das lentes.

Knopp ainda teve uma última experiência, considerada a melhor delas, em um pequeno restaurante com cardápio típico da Ilha da Madeira. Conseguiu dar risadas e aprender, mas a passagem aérea já estava comprada. Ao fazer um balanço, ele dá medidas iguais a reveses e boas experiências.

- Não tenho vergonha de falar que passei fome, que por semanas almoçava somente feijão ou massa. À noite, comia torta de maçã do McDonald?s porque eram duas por um euro (cerca de R$ 4,50). Fui ajudado por pessoas incríveis. Me perguntam se não deu certo. Para mim, deu. Acredito muito no tempo e na intensidade das coisas. Acho que esse era o meu tempo naquele momento. Não me arrependo. Perguntam se volto... quem sabe, né? Porém, desta vez, faria um pouco diferente e já sabendo como as coisas funcionam - diz Knopp, ainda se readaptando à Serra (está vivendo em Farroupilha) e sem câmera própria.

Bons e maus brasileiros

Em 2017, Juliana Cramer, 42 anos, estudante de Gestão Comercial de Porto Alegre, acompanhou o então companheiro na empreitada da emigração. Antes de chegarem a Lisboa, passaram dias inesquecíveis, em clima de lua de mel, em Madrid, na Espanha. Mal havia desembarcado do ônibus que os levara até a capital portuguesa e Juliana já tinha opinião formada: detestou o lugar, achou tudo feio. O casal alugou um quarto em uma residência de brasileiras, e não demorou para que o homem conseguisse um emprego como cuidador de idosos. Sob o forte calor de agosto, ela sentia "um aperto no peito inexplicável".

- Eu odiei tudo lá, aquela água do mar congelante, as pessoas fumando na minha cara. Até os brasileiros que estavam há algum tempo lá já tinham jeito de relaxados e pegavam aquele sotaque horrível muito rápido - conta Juliana.

Em sua única tentativa de trabalhar, ela ficou apenas um dia em uma cafeteria. Ao final do expediente, o dono a dispensou, argumentando que ela não era rápida o suficiente. A universitária não teve mais disposição de seguir em busca de um emprego. Deprimida, pensava nos cães que havia deixado para trás e também na madrinha, que adoecera.

- Virei um zumbi. Só chorava, lavava roupas, limpava o banheiro e via novelas no celular.

Em pouco mais de um mês, comprou o bilhete aéreo da volta. Lamentava abandonar o relacionamento, mas se enxergava como se fosse um peso extra para o parceiro carregar. Os dois choraram juntos.

- Não vai - pedia ele.

A decisão estava tomada. Na condição de imigrante ilegal, conta Juliana, "morreria do coração". Já estava dependendo de tranquilizantes para conseguir tocar os dias.

- Foi realmente uma das maiores mancadas que fiz na vida: não ter me acostumado, não ter dado a chance de me acostumar ao lugar.

Um episódio ocorrido na Universidade de Lisboa ganhou destaque internacional em abril. Estudantes brasileiros da Faculdade de Direito se enfureceram ao encontrar, no hall do prédio, uma caixa contendo pedras e os dizeres "grátis se for para atirar a um zuca (que passou à frente no mestrado)". Uma associação de alunos da instituição assumiu a autoria do protesto, afirmando se tratar de uma mensagem satírica, e não xenofóbica, expondo a insatisfação com o número cada vez maior de brasileiros - tirando vaga de portugueses - na pós-graduação. Juliana não sentiu tanto na própria pele a discriminação, mas relata que a aversão e o rechaço são percebidos com frequência:

- Te exploram. Acham que as brasileiras são putas e que os homens são ladrões ou falcatruas. Eles te tratam muito bem na Europa se você é turista. No momento em que você pede trabalho, começa a discriminação.

Um advogado brasileiro que emigrou em condições favoráveis (tem cidadania italiana) e prefere não se identificar confirma parte do discurso de Juliana:

- Tem muitos bons brasileiros, mas também tem muitos maus brasileiros.

A má fama é real e encarada como sinal de alerta por alguns empresários portugueses. Morador do Porto, um empresário de 62 anos é proprietário de um restaurante. No geral, ele diz que sua impressão dos brasileiros é "a pior possível".

- Há uma vaga (parcela) que é desqualificada por demais. Não respeitam as nossas regras e querem impor as suas. Não há respeito. São muito cheios de si, não gostam de receber ordens e sempre acham que têm razão em tudo e sabem mais do que os portugueses. Causam-me sempre confusão. São indisciplinados e demoram para aprender. Quando aprendem, vão a um sítio melhor e deixam-nos de um dia para o outro - relata o empresário, que solicitou anonimato.

Ele também é dono de dois apartamentos, alugados para turistas. Os interessados brasileiros são rejeitados de antemão:

- Já tive problemas por não pagarem-me as contas de luz e gás. E não foi uma nem duas vezes. Quando decidem voltar ao Brasil, deixam-nos em sarilhos (situação difícil). Fogem e não pagam o que devem.

A esperança renovada

José Henrique Dias, 25 anos, técnico de metrologia, e Taiana Schumacher, 24 anos, analista de recursos humanos de São Leopoldo, passaram um ano em Braga, entre 2017 e 2018. Decidiram o destino com base em pesquisas na internet, comparando preços para descobrir a cidade mais viável. Com uma reserva de dinheiro levada do Brasil, alugaram um apartamento. O primeiro emprego de José Henrique, como vendedor de filtros d?água, apareceu após três meses. Na sequência, trabalhou em uma padaria, ramo em que a companheira também encontrou ocupação. Achou os expedientes puxados, de carga horária mais elevada. Com renda de um salário mínimo cada um, conseguiam se manter, mas a saudade da família e de casa acabou motivando a decisão de regressar.

- Também pesou a questão de não podermos trabalhar na nossa área - justifica ele. - Não nos arrependemos nem de ter ido, nem de ter voltado. Vemos como uma experiência. Na volta, passamos a dar valor a coisas simples, que antes nem percebíamos.

Uma segunda tentativa não é cogitada pelo casal.

- Gostaríamos de voltar para Portugal ou para a Europa para passear, mas não para morar - esclarece o técnico em metrologia.

A família da administradora de empresas Cristiane Gomes, 43 anos, de Porto Alegre, também se preparou com antecedência antes de deixar o Rio Grande do Sul. Foi uma resolução e tanto: ficariam para trás a estabilidade financeira, bons salários, casa e automóveis próprios, uma carreira artística consolidada - Cristiane e o marido, o empresário Sandro Morais Pimentel, 45 anos, cantavam no CTG Aldeia dos Anjos, de Gravataí, e viajavam para shows. A caçula, Luiza, 11, estudava em escola particular, e Rafhaella, 20, cursava Agronomia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

- Tínhamos quase tudo, mas não tínhamos segurança para andar na rua - sintetiza Cristiane.

Depois de dois anos de planejamento e uma viagem inicial a turismo, para reconhecimento do terreno, os quatro partiram em definitivo em outubro de 2018, rumo a Setúbal, a cerca de 50 quilômetros de Lisboa. Sandro solicitou um visto que lhe permitisse dar continuidade aos negócios no setor da construção civil. Os primeiros meses foram difíceis. Quando conversou pela primeira vez com a reportagem, em maio, Cristiane estimava já ter se submetido a mais de uma centena de entrevistas, sem ter conseguido emprego. Faltava-lhe o título de residência, cujo processo tramitava com morosidade no SEF, e só lhe restavam as vagas em cafés e restaurantes, além de outras similares, com remuneração igualmente baixa. A empresa do marido engatinhava, tentando criar raízes em um mercado de grande concorrência.

- Já estamos há algum tempo com a "faca no pescoço". Sem essa (autorização de) residência, muitas portas ainda estão fechadas e não conseguimos buscar melhor remuneração para sair do sufoco. Portugal não é tão disponível assim para os imigrantes, como se diz. Há de se ter muita resiliência para ouvir tanto "não", para se reconstruir e reorganizar a vida, que era de certa forma estável, para jornadas de 12 horas e subempregos, a partir do zero. Como se o que fizemos valesse nada. E realmente não vale. A não ser que você seja um profissional de atividade bem específica ou altamente qualificado, está fadado a apertar o reset e restaurar as configurações originais de fábrica - reflete a administradora, que, na Europa, modificou o repertório das apresentações musicais, trocando as canções tradicionalistas por sertanejas, almejando mais público. - Mas somos gaúchos! Não é qualquer marola que nos desestabiliza - completou.

Aprovada na Universidade de Lisboa, Rafhaella começou a trabalhar para contribuir com o orçamento doméstico. Cristiane, angustiada, sabia que a família não teria como custear a graduação da primogênita se os documentos não fossem liberados antes do início das aulas e se não surgisse melhor fonte de renda. Ao mesmo tempo em que estavam cientes das dificuldades, os quatro aproveitavam o que a nova realidade lhes oferecia, como caminhar pelas ruas sem receio de assaltos ou ocorrências até mais graves. Todas as esperanças estavam concentradas em uma consulta no SEF agendada para 22 de maio. A depender da resposta das autoridades, duas opções estariam postas: desistir e voltar a Porto Alegre ou permanecer em Portugal e batalhar por melhores condições. Em muitas entrevistas para recolocação profissional pelas quais passou, Cristiane obteve promessas de que poderia telefonar de volta tão logo obtivesse seu título de residência.

Dias depois de irem ao SEF, e com a remessa dos cartões pelo correio, a família obteve a certeza: estava aprovada a permanência em Portugal.

- Foi muito tenso, mas passamos no crivo! - comemorou Cristiane, que até então economizava todo euro possível no supermercado e resolveu comprar um creme de amendoim de 2,99 como um mimo a si própria pela conquista.

A administradora começou, neste mês, um treinamento para trabalhar no setor de apoio ao cliente em uma empresa de telecomunicações.

- Conseguimos vencer um grande desafio, mas ainda falta um "eito", como se diz, para que tenhamos estabilidade e possamos dizer que encontramos o equilíbrio - avalia Cristiane.

LARISSA ROSO

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