sexta-feira, 19 de julho de 2019



19 DE JULHO DE 2019
DAVID COIMBRA

A maior dor do Brasil

O Brasil ainda crescia, o governo gastava bem, e fui entrevistar a então presidente Dilma Rousseff no Palácio da Alvorada. Era uma exclusiva para a RBS, eu representava a Zero Hora. E lá estávamos nós, na vetusta biblioteca do Palácio, quando, a folhas tantas, Dilma falou com orgulho sobre todos os milhões de brasileiros que tinham ascendido da miséria à classe média. Havia menos pobreza no Brasil, disse. Nesse ponto, questionei:

- Se a pobreza diminuiu, por que aumenta a violência?

Dilma tergiversou um pouco para responder, começou a discorrer sobre o pré-sal, que devia "nos tornar ricos antes de ficarmos velhos" e por aí derivou a conversa. Minha dúvida continuou em aberto. Por que, no Brasil, o progresso material não corresponde a mais segurança?

É que nossos dramas são mais profundos. Não basta dinheiro para resolvê-los.

Ontem, citei alguns colegas repórteres que têm experiência na área de segurança pública. Se você conversar com qualquer um deles, compreenderá que as causas da violência são várias, estão encadeadas e precisam ser atacadas em conjunto e ao mesmo tempo. Mas, se for eleger uma como a mais importante, sei para onde olhar. Para dentro de casa. Para a família.

O desvirtuamento do Brasil começa no começo: quando o menino vive em uma família desajustada, sente-se abandonado pelos pais e é acolhido pelo tráfico. A partir daí, ele só vai piorar.

Um dos repórteres que citei ontem, o Renatinho Dornelles, já realizou, junto com a também jornalista Tatiana Sager, o ótimo filme sobre o Presídio Central. Agora, eles prepararam uma série nova. O título será Retratos do Cárcere. O lançamento deve ocorrer no segundo semestre, mas já assisti aos vídeos. Um deles é acerca de menores infratores detidos na Fase. É um tapa na cara. Nada menos do que um tapa na cara.

Um dos menores entrevistados conta como se transformou em um assassino perigoso, autor, segundo seus cálculos, de "13 ou 14 mortes, e só uma de um inocente". Disse ele que "não sabia matar, nunca tinha matado", até que assassinou o primeiro, por vingança.

- Aí fui gostando - acrescentou, com a naturalidade de quem fala de um hábito pouco saudável, como gostar em demasia de carboidratos.

Outro relatou que, certa noite, estava em casa "e um gurizão foi lá e matou meu primo com um tiro de 12 na cabeça". Dias depois, ele estava "dando um rolê na vila" e reconheceu o assassino.

- Então eu peguei ele e fiz um negócio com ele - disse.

A entrevistadora quis saber que "negócio" era aquele. Sorrindo ante a lembrança, ele detalhou:

- Arranquei a cabeça dele, os braço, as perna? - Esquartejou ele vivo? - perguntou a entrevistadora.

- Vivo, claro. Claro.

Um terceiro revelou ter sido preso por portar uma metralhadora. Rindo, apontou para um colega de cela:

- Meu cupincha matou um policial. Na rua, a polícia é nóis, é nóis que somo a lei!

Esses garotos são os soldados do tráfico. Eles começam cumprindo pequenas tarefas, como delivery de drogas ou vigilância nas bocas de fumo. Se ganham a confiança da facção, são escalados para trabalhos mais importantes, como a eliminação de algum rival. Antes dos 18 anos, já são treinados na violência. Depois dos 18, são feras consumadas. São monstros. Eles matam, esquartejam, são presos e riem do destino.

O Brasil não vai resolver seus problemas de segurança pública enquanto não fizer secar a fonte de mão de obra do crime. Não vai adiantar prender, não vai adiantar diminuir a maioridade penal, não vai adiantar nem fazer cadeia nova, se a infância continuar desassistida. Os meninos abandonados do Brasil são a maior dor do Brasil.

DAVID COIMBRA

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