Na rua assombrada
No período do Império, os presidentes das províncias brasileiras faziam relatórios para prestar contas ao poder central. No ano de 1864, o advogado Esperidião Eloy de Barros Pimentel, escolhido pelo imperador para presidir o Rio Grande do Sul, registrou o seguinte no documento oficial emitido de Porto Alegre: "Continua inalterada a tranquilidade pública.
Cumpre-me, entretanto, registrar aqui um fato, ocorrido nesta cidade, e que esteve prestes a perturbá-la. Tendo desaparecido o taberneiro Januário Martins, e seu caixeiro, e procedendo a polícia a minuciosas indagações, descobriu em um fosso no quintal da casa em que habitava José Ramos os cadáveres daqueles infelizes; descobrindo-se também naquela ocasião os ossos completos de um esqueleto humano.
As mais veementes presunções condenavam a Ramos e sua amásia Catharina Palse. Os interrogatórios, que às 3 horas da tarde começaram na Secretaria da Polícia, e continuavam ainda à noite, atraíram curiosos em grande número, e alguns deles ousaram exigir que os presos lhes fossem entregues para serem por suas mãos justiçados.
Os crimes eram horrorosos, e acompanhados de circunstâncias as mais agravantes. Mas tal pretensão, em todo o caso inadmissível num país civilizado, era tanto mais desarrazoada quanto tinha sido pronta e eficaz a ação da justiça. Os presos foram recolhidos à cadeia, sendo, porém, de lamentar ferimentos em pessoas que, surdas às admoestações da autoridade, conservavam-se diante da força, atirando-lhe pedras, pedaços de garrafas, e apupando-a."
Esse foi o registro oficial do crime da Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, fato que no decorrer dos anos saltou dos registros oficiais e das páginas dos jornais para a literatura, ganhando novas nuances e transformando-se na principal lenda urbana da Capital gaúcha.
Não há como transitar por aquela artéria da cidade sem lembrar sua história de horror. Ainda na semana passada, estive no Café Mal Assombrado - uma casa criativa e acolhedora inaugurada há menos de dois anos na indigitada rua -, mas recusei delicadamente o pão com linguiça e a torta de sangue sugeridos no cardápio.
Pois agora o célebre episódio ganha uma nova versão saída da imaginação do talentoso escritor Tailor Diniz: o livro Os Canibais da Rua do Arvoredo. Leitura obrigatória. Eles escaparam do linchamento, mas jamais escaparão desta condenação eterna que é a reprise reiterada da história escabrosa. Ainda assim, como pude constatar recentemente na rua mais assombrada de Porto Alegre, continua inalterada a tranquilidade pública.
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