terça-feira, 5 de março de 2024



05 DE MARÇO DE 2024
NÍLSON SOUZA

Na rua assombrada

No período do Império, os presidentes das províncias brasileiras faziam relatórios para prestar contas ao poder central. No ano de 1864, o advogado Esperidião Eloy de Barros Pimentel, escolhido pelo imperador para presidir o Rio Grande do Sul, registrou o seguinte no documento oficial emitido de Porto Alegre: "Continua inalterada a tranquilidade pública. 

Cumpre-me, entretanto, registrar aqui um fato, ocorrido nesta cidade, e que esteve prestes a perturbá-la. Tendo desaparecido o taberneiro Januário Martins, e seu caixeiro, e procedendo a polícia a minuciosas indagações, descobriu em um fosso no quintal da casa em que habitava José Ramos os cadáveres daqueles infelizes; descobrindo-se também naquela ocasião os ossos completos de um esqueleto humano. 

As mais veementes presunções condenavam a Ramos e sua amásia Catharina Palse. Os interrogatórios, que às 3 horas da tarde começaram na Secretaria da Polícia, e continuavam ainda à noite, atraíram curiosos em grande número, e alguns deles ousaram exigir que os presos lhes fossem entregues para serem por suas mãos justiçados. 

Os crimes eram horrorosos, e acompanhados de circunstâncias as mais agravantes. Mas tal pretensão, em todo o caso inadmissível num país civilizado, era tanto mais desarrazoada quanto tinha sido pronta e eficaz a ação da justiça. Os presos foram recolhidos à cadeia, sendo, porém, de lamentar ferimentos em pessoas que, surdas às admoestações da autoridade, conservavam-se diante da força, atirando-lhe pedras, pedaços de garrafas, e apupando-a."

Esse foi o registro oficial do crime da Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, fato que no decorrer dos anos saltou dos registros oficiais e das páginas dos jornais para a literatura, ganhando novas nuances e transformando-se na principal lenda urbana da Capital gaúcha. 

Não há como transitar por aquela artéria da cidade sem lembrar sua história de horror. Ainda na semana passada, estive no Café Mal Assombrado - uma casa criativa e acolhedora inaugurada há menos de dois anos na indigitada rua -, mas recusei delicadamente o pão com linguiça e a torta de sangue sugeridos no cardápio.

Pois agora o célebre episódio ganha uma nova versão saída da imaginação do talentoso escritor Tailor Diniz: o livro Os Canibais da Rua do Arvoredo. Leitura obrigatória. Eles escaparam do linchamento, mas jamais escaparão desta condenação eterna que é a reprise reiterada da história escabrosa. Ainda assim, como pude constatar recentemente na rua mais assombrada de Porto Alegre, continua inalterada a tranquilidade pública.

NÍLSON SOUZA

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