31 DE DEZEMBRO DE 2019
TICIANO OSÓRIO
Qual é a graça em chamar alguém de bicha?
Eles me chamavam de fruta-pão. Variação de frutinha, um dos tantos nomes pejorativos para se referir aos homossexuais. Não importava que eu não fosse: alguma coisa em mim me tornava alvo da zombaria de alguns colegas do Ensino Médio. Vai ver era porque, aos 15, 16 anos, eu ainda não havia beijado uma guria, ou porque eu e um amigo tínhamos colocado brinco (em 1989, garotos com orelha furada não eram tão comuns quanto hoje). No fundo, não era ser chamado de fruta-pão o que me machucava, mas saber que me chamavam assim porque queriam me machucar.
Essa é uma das táticas para agredir alguém sem sujar as mãos: a molecada aprende desde cedo a xingar o juiz do futebol e o goleiro de "viado", a condenar a "frescura", a ver o choro como coisa de "marica", a definir a covardia como "bichice".
Como se não fosse um ato de coragem ser homossexual em um país tão homofóbico.
Segundo o Grupo Gay da Bahia, a cada 23 horas uma pessoa LGBT+ é assassinada por causa de sua sexualidade ou comete suicídio. Há quem duvide das estatísticas, acusando-as de infladas pelo ativismo, e a própria entidade reconhece que, sem dados oficiais, se baseia em noticiários e redes sociais, o que pode gerar tanto subnotificação quanto erros de interpretação.
Mas não há dúvida de que os gêmeos baianos José Leonardo e José Leandro foram espancados por oito homens, em junho de 2012, apenas por estarem voltando abraçados de um show - foram "confundidos" com gays. Leonardo morreu.
Não há dúvida de que o ambulante Luiz Carlos Ruas foi agredido até a morte por dois rapazes no metrô de São Paulo, no Natal de 2016, apenas por sair em defesa de duas travestis.
Não há dúvida de que o adolescente Itaberli Lozano foi morto a facadas e teve o corpo queimado porque sua mãe (condenada em novembro) não aceitava o fato de ele ser gay.
Essa violência contrasta com vários avanços na sociedade, como a criminalização da homofobia e da transfobia pelo STF, as políticas de inclusão e diversidade sexual nas empresas, a naturalização do beijo gay em novelas. Mas um anacronismo perdura: o humor retrógrado circula mesmo entre ditos progressistas.
Uma das bandeiras que a esquerda ergue mais do que a direita é a da igualdade de gêneros e do combate à homofobia, mas não são poucos os esquerdistas que fazem piadas preconceituosas. A rejeição parece ser seletiva: condenam se o alvo for Jean Wyllys, ex-deputado federal pelo PSOL-RJ, mas apertam o botão de compartilhar se for uma insinuação contra Carlos Bolsonaro, vereador licenciado do PSC-RJ. Até Fernando Haddad, candidato do PT à Presidência em 2018, fez troça. Em abril, durante discussão no Twitter com Carlos, perguntou: "Priminho tá bem?". Agora no final de dezembro, na cola das denúncias de que o deputado estadual Flávio Bolsonaro coagia servidores a devolver parte do salário (a chamada "rachadinha"), surgiram chistes impublicáveis sobre a sexualidade de Carlos.
Mesmo que alguém "justifique" dizendo que o objetivo é expor a suposta hipocrisia dos Bolsonaro - o presidente Jair já afirmou que "seria incapaz de amar um filho homossexual", e o próprio Carlos dispara contra pautas LGBT+ -, ser ou não ser gay e tornar isso público são questões que só dizem respeito a ele. As insinuações existem para diminuí-lo como político e como pessoa, como se homossexualidade fosse algo errado, algo do que se envergonhar. Até quando a forma de atacar ou ridicularizar um homem será pintando-o como gay? Piada homofóbica não deixa de ser homofóbica por causa do alvo. A rejeição a piadas homofóbicas parece ser seletiva
* David Coimbra retorna no dia 3 de janeiro - TICIANO OSÓRIO - INTERINO