sábado, 31 de agosto de 2019


31 DE AGOSTO DE 2019
LYA LUFT

Não é o trabalho que enobrece



Algumas frases feitas ouvidas desde sempre ficam gravadas em nós como verdades. Amadurecendo, a gente vai se libertando desses mitos, ou compreendendo que só algumas vezes são verdade.

Uma delas é “Querer é poder”, o que cedo constatamos não ser bem assim... Quando menina, tive uma caixinha de lápis de madeira, escrito em cima esse lema. Eu o detestava, porque queria acordar magrinha, e não funcionava o querer – mesmo intensamente...

Outra poderia ser “A dor nos torna melhores”, estranha apologia do sofrimento. Cedo veremos que a muitos ele apenas torna amargos, eternas vítimas, queixosos, azedos, revoltados. Mais um desses ditos seria que “O trabalho enobrece”, coisa que vou questionar aqui.

Trabalhar pode ajudar a conferir segurança, qualidade de vida razoável, dignidade sobretudo, que é o que de verdade importa. Confiança em si mesmo, melhor ainda. Mas depende de inúmeras condições, então não é o trabalho em si, mas um conjunto de situações de cada indivíduo, ou de um grupo. Assim como a frustração de não poder tudo o que queremos, mesmo com muita luta, e de nem sempre nos tornarmos melhores com a dor, o trabalho pode nos desmoralizar, pode nos embrutecer.

Só nos enobrece aquilo que nos compensa, nos dá alegria, sentido de vida e alguma importância, ainda que seja a de colocar corretamente uma pecinha de engrenagem para que um carro, um avião, um aparelho cirúrgico ou uma engrenagem imensa funcione direito salvando vidas, trazendo progresso, melhorando alguma coisa. 

O bom trabalho é aquele para o qual vamos todas as manhãs (ou noites) com uma disposição boa, mesmo enfrentando condução péssima ou atrasada, distâncias, cansaço. Mas saberemos que aquela oficina, escritório, mina, avião, cozinha ou rua, espera nossa ação. Temos um lugar no vasto mundo, talvez alguns colegas formem uma nova família, apesar de diferenças e desentendimentos – como ocorre numa família.

Aos poucos emergimos da servidão e da escravidão para o trabalho instituído, com operários ou trabalhadores de qualquer setor e hierarquia, com alguns direitos embora ainda muito por fazer, e deveres que precisam ser atendidos pelo trabalhador.

Mas mesmo em grandes cidades, onde as leis imperam mais e melhor, diariamente multidões humanas seguem espremidas em condições inaceitáveis para o lugar do seu emprego – eu ia dizer “como animais”, mas faço a ressalva: como alguns animais, pois cavalos e touros ou vacas ditos “nobres” recebem tratamento bem melhor do que muitos trabalhadores.

Nenhuma condição porém, nem mesmo alto salário e lugar ideal, vale tanto quanto sentir-se necessário e valorizado – ainda que seja por colocar diariamente centenas de vezes o mesmo parafuso no mesmo lugar da mesma engrenagem, para que ela funcione bem – para que o mundo funcione bem.

E um automóvel, ou um avião, ou algo menor, não se fragmente matando duzentas, cinco, ou uma só pessoa que seja. Então, o trabalho vale tudo.

LYA LUFT


31 DE AGOSTO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Mil coisas

Meu reino por um assunto, penso a cada manhã. Um assunto que não faça o leitor sair de mãos abanando dessa página. Que ao menos o distraia, que acenda uma fagulha, conduza a algum lugar... A um livro, por exemplo. Acabei de ler Querida Konbini, da japonesa Sayaka Murata, uma prosa simples, direta, com uma história que poderia ser trivial, mas não é (o talento dos grandes escritores é transformar o corriqueiro em matéria para reflexão). Estaremos nos saindo bem como seres humanos? É a pergunta embutida no livro, cuja resposta me desola: não, não estamos. Repetimos fórmulas consagradas de viver, mesmo que nos façam infelizes. Não sentimos compaixão, empatia e pouco nos responsabilizamos pelo mundo que deixaremos. Temos medo da horizontalidade, de conviver com quem é diferente. Os muros continuam a ser erguidos, separando em vez de unir. Só pensamos em nós mesmos.

O ego descontrolado é uma doença que se tornou epidêmica, um vexame, só que ninguém se envergonha, ao contrário, cada um de nós luta pelo seu quinhão de seguidores e bajuladores. Quem não é visto, não é lembrado: uma humilhação viver em função disso. No fundo, o que gostaríamos mesmo era de dar uma sumida. O objeto do desejo passou a ser a invisibilidade, mas ela tem um custo alto.

Fernanda Young tinha um ego potente - e um talento proporcional. Entregava o prometido, nada era da boca pra fora. Escrevia, criava, interpretava, se expunha, se jogava: com ela, era das entranhas para fora. Acabou virando um ícone, cuja morte aos 49 anos deixou a todos perplexos. Como assim, de forma tão súbita? Foi uma saída de cena surpreendente e de uma coerência involuntária. Morreu de uma parada cardíaca, mas, vá saber, talvez também do cansaço de existir tão intensamente.

Viver tem sido esgotante. Estamos fartos da violência, de todas elas. A violência do julgamento alheio, a violência da burrice, a violência da desesperança: como se destacar nessa sociedade de protagonistas, em que todos podem tudo?

Inclusive podem dar outro final aos fatos. Algum cineasta, um dia, talvez faça Fernanda Young viver até os cem anos, assim como Tarantino conseguiu, em seu novo filme ("Era uma vez...em Hollywood"), nos enternecer e nos fazer suspirar de alívio ao trocar a violência de lugar, substituir a real pela caricata, aquela que é tão exagerada que se torna risível. Tarantino fez não apenas um bom filme, mas um filme bondoso, um filme que resgata nossa ilusão de que os mocinhos têm alguma chance.

E assim, misturando assuntos - a magia do cinema, a potência de Fernanda, um livro japonês, o desdém pelos outros, nossos egos inflados, a angústia universal - chego aqui, torcendo para que você não saia dessa página de mãos abanando, que ao menos acredite que ainda dá tempo de sermos melhores como seres humanos.

MARTHA MEDEIROS


31 DE AGOSTO DE 2019
CARPINEJAR

Saia das asas dos filhos

Antes, os filhos tinham medo de apresentar os seus amores para os pais. Havia um temor pela desaprovação, pela oposição, pelo boicote. Guardavam segredo até o inevitável, até as últimas consequências. O início do romance era clandestino, com alegação de que se dormiria na casa de um amigo. Eles só ficavam sabendo por terceiros, a partir de fofocas ou flagrantes na rua. Evitava-se o julgamento, a ressalva por classe social diferente e temperamento oposto.

Os jovens sofriam com o preconceito, revivendo sempre um Romeu e Julieta em segredo. Chegavam a casar cedo para poder se beijar em paz ou até engravidar para sair de casa e escapar do policiamento.

Agora os pais separados estão com medo de apresentar os namorados para os filhos. Inverteu-se a situação, numa infantilização súbita e inesperada da responsabilidade. O que há de pai e de mãe que escondem os seus novos parceiros da família. Acham que não serão aceitos. Acham que serão criticados. Acham que perderão o respeito.

Vem ocorrendo uma completa falta de personalidade dos adultos. Eles cederam terreno demais para os filhos, a ponto de se tornarem dependentes da opinião deles. Não querem desagradá-los. Podem, inclusive, anular as suas vidas pessoais para não melindrar ninguém. Angustiam-se com a iminente formalização dos laços e adiam o encontro o máximo possível. Talvez para não profanar o santuário do casamento anterior.

Os namorados e as namoradas são tratados como amantes de motel, casos esporádicos, distantes da convivência dos círculos filiais. São desprezados para não ferir o ritmo e a dinâmica da casa. Não devem aparecer, não devem telefonar em determinados horários, com a desculpa de que ainda é cedo.

Cedo para quê? Para ser feliz? Para tentar conhecer alguém? Como determinará quem é o outro ocultando parte importante de sua rotina?

Não sei quando emergiu essa covardia, essa inferioridade que confere poder de censura para as crias, permitindo que sejam tiranos e mimados. A mudança de comportamento revela um dado preocupante: os pais agem como se estivessem casados com os filhos, compulsivos devedores de sua conduta.

Não se impõem como figuras independentes. Experimentam uma simbiose que apenas reduz as escolhas e empobrece os contrastes da realidade. É dar o exemplo errado, de que é feio lutar pela alegria amorosa, de que o prazer é secundário, de que mais vale manter a aparência ainda que a custo de mentiras e omissões.

Quando a paternidade e a maternidade subjugam os relacionamentos, distorções aniquilam a sinceridade, criando versões improcedentes de pessoas que não correspondem aos fatos.

A autenticidade é insubstituível, a única herança que fica. Que o filho conheça os pais por aquilo que são em vez de descobrirem um dia o que eles nunca contaram.

CARPINEJAR


31 DE AGOSTO DE 2019
LEANDRO KARNAL

A FALA DO INIMIGO

A Democracia é uma invenção grega aperfeiçoada por acontecimentos e ideias como a Magna Carta Inglesa, o habeas corpus (também britânico), as Revoluções Gloriosa e Francesa, a Independência das 13 colônias, o movimento Cartista do século 19 (pelo voto universal masculino) e por pressões de trabalhadores, mulheres e negros que forçaram a ampliação da noção de voto e de participação.

Ela é sempre imperfeita e por isso rica e complexa: a Democracia está fadada ao conceito de construção permanente. A ideia democrática também tem uma sina: corre perigo permanente por causa das suas virtudes e... dos seus equívocos. Como advertia Aristóteles, pode degenerar em demagogia ou, termo mais estranho e muito importante, oclocracia, a multidão nas praças controlando os rumos de um Estado de acordo com oscilações passageiras.

Um dos maiores privilégios da Democracia é a liberdade de expressão. Ela se torna central para estimular pensamento crítico, evitar conchavos reservados e escusos, manifestar a diferença de uma sociedade e a heterogeneidade natural do humano Incluída na "Bill of Rights" fundamental dos EUA, dominante na Declaração dos Direitos Universais do Homem da ONU e defendida na nossa Constituição de 1988, a liberdade de expressão é eixo definidor de todo o resto. Ilimitada? O próprio texto constitucional já imagina seu abuso nas figuras jurídicas da calúnia, da difamação e da injúria. Mas, importante, a afirmação continua livre, a lei maior apenas garante defesa a quem se sentir prejudicado pelo ataque de outrem.

Não existe vida democrática sem liberdade de expressão. Sua falta danifica mais o edifício democrático do que o eventual abuso. Liberdade de expressão implica, sempre, o risco de ouvir besteiras, injustiças, insanidades, asneiras, sandices, desvarios, idiotices completas e, até, afirmações admiráveis. Seu ideal? Um cidadão brasileiro como eu, autor da crônica, expresso minha opinião neste grande veículo de imprensa. Como todo ser humano falho, posso dizer inverdades ou defender coisas sem nexo. Outros cidadãos podem, gozando da liberdade de expressão, admirar o que eu digo, redarguir, discordar em parte e no todo e, inclusive, como é comum no mundo de redes, atacar com adjetivos variados. 

Tudo é parte da liberdade democrática. O público lê meu argumento, vê o alheio, pondera, e segue o seu próprio. Nas contradições discursivas, cremos, a ideia se aperfeiçoa. Qual o defeito estrutural de uma censura? Acreditar que um indivíduo ou um corpo restrito de pessoas sejam os detentores da verdade e substituir o debate pela convicção de um ou de poucos. Mesmo que o déspota seja esclarecido, ele não é capaz de calcular o alcance das medidas, se não ouvir as reclamações ou sugestões dos atingidos.

Como eu disse, liberdade de expressão incomoda. Exemplos? Em 2013, a ativista cubana Yoani Sánchez veio ao Brasil e apresentou uma opinião crítica do regime cubano. Assim que desembarcou, ela foi acusada por um ruidoso grupo, com gritos e cartazes, de ser agente da CIA. Um manifestante afoito puxou com força o cabelo da jornalista. Ela se manifestou espantada, porque ela lutava para que aquele tipo de manifestação pudesse ocorrer em Cuba também.

Passados quatro anos, recebemos outra visita internacional, a filósofa norte-americana Judith Butler. Seus temas de pesquisa envolviam o conceito de gênero. Na porta do Sesc Pompeia, em São Paulo, manifestantes contra e a favor gritavam. Um site apresentava 300 mil assinaturas pedindo o cancelamento do evento De novo: muito bom que se debatam pareceres distintos, todavia o processo se repete: não querem ouvir o que se afasta da zona da crença. Não é um debate, é um cala-boca. Nisso, há militantes de esquerda e de direita que se assemelham terrivelmente: ditadura é só no outro campo e liberdade de expressão é só a minha. Lamento sempre tais equívocos.

Há pouco, Miriam Leitão e Sergio Abranches foram desconvidados de um evento literário em Jaraguá do Sul (SC). De novo, não se trata de discordar, ou de comparecer ao evento e ouvir argumentos para achar outros. Trata-se do "não quero ouvir" e "você não pode falar". Não gosta de Miriam Leitão? Existe uma solução sempre ao seu alcance: não leia, não assista, não siga a jornalista nas redes sociais. 

Discorda de ideias dela? Outra solução excelente na democracia: escreva um livro desdizendo o dela ou participe da sua palestra e, educadamente, traga dados opostos que demonstrem o possível equívoco. O resto é ignorância, autoritarismo de direita e de esquerda, incapacidade de ouvir o contraditório, infantilidade e, sempre, sedução pelas ditaduras.

Temos um longo caminho pela frente. Por mais que alguns detestem, a sociedade é compartilhada por muitas outras pessoas e, incrível, algumas delas não têm minha luz e meu discernimento. Debata com elas e, assim, o farol ofuscante do seu saber poderá brilhar ainda mais e rasgar a noite da ignorância dos seus inimigos. Afinal, se seus adversários são "idiotas" ou "analfabetos funcionais", qual o risco que você correria? É preciso ter esperança e muita, muita paciência democrática.

LEANDRO KARNAL

31 DE AGOSTO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

O ÓDIO


Nos mitos clássicos e nas pinturas renascentistas, Afrodite (Vênus/amor) triunfa sobre Ares (Marte/guerra), selando a vitória da doçura sobre a violência. É o sonho das almas sensíveis, que artistas deleitam-se em nos entregar, com belas imagens, que inspiram e nos dão o necessário alimento do pensar. Na literatura mais popular da história, porém, o protagonista é um personagem virtuoso, que espalha mensagem estoica, de amor abnegado, mas ao final é perseguido por ódio coletivo e divino, para ser, no clímax trágico, condenado em tribunal injusto e também para a saciedade de seu pai, que lhe impõe cálice amargo e toma seu sofrimento e seu sangue em sacrifício. 

A mensagem de amor contrasta com o cenário de triunfo do ódio, e uma laje removida da tumba não é suficiente pra suprimir a memória trágica da descomunal violência, praticada contra personagem amoroso. Será o ódio mais forte que o amor?

Vizinha do ódio, a cólera tem o poder de provocar a revelação das entranhas, quando a possessão furiosa supera barreiras do decoro e o sujeito diz o que estava reprimido, ou comete o que o juízo interdita. É assim na tragédia Édipo Tirano, de Sófocles, quando o soberano ataca ao vidente Tirésias, até que este, agastado, revela o que ocultava, a verdade da identidade do rei parricida e incestuoso. A cólera tem o condão de revelar intimidade terrível, com certo grau da verdade, usualmente insuportável no convívio social. Quando esta revelação libera o que estava reprimido, produz-se um prazer associado à sensação de alívio, poder e triunfo.

A cultura, todavia, desde a era da tragédia grega, no século V a.C., dispõe de recurso eficiente para purgar o ódio pela arte, projetando-o ritualmente nas tensões do palco, a certa distância e proximidade do espectador, e provocando o que Aristóteles chama, com vocabulário médico, de catarse. Desde então, a representação de paixões odiosas é matéria potente da arte - que o digam também Shakespeare e Nelson Rodrigues.

Deu-se no Brasil que o ódio mimetizado nas ruas e mídias ocupou o lugar da arte, e fez aflorar o horror íntimo de milhões de pessoas. Assim liberado, o ódio premia e cativa a libido, de modo irresistível. Eis porque é quase impossível despertar aos que entraram nesse transe, mesmo diante dos fatos hediondos que ora assombram nosso cotidiano; estão reféns de um tipo de prazer que já parecia impossível. Por anos, milhões de pessoas preconceituosas reprimiram seu ódio sob a luz de um novo pacto cultural. Hoje atacam sem pejo ao politicamente correto, a ética contemporânea de respeito, que recusa todos os preconceitos. Descartada a ética e consagrado o ódio, avança-se para trevas em que Eros está ausente e a irracionalidade campeia contra cultura, educação, ciência, dignidade humana e meio ambiente.

Eis como o Brasil se tornou teatro do ódio, com todas as suas fúrias. Para que Vênus novamente dome Marte, precisamos de teatro e pensamento, capazes de purgar com arte os monstros que ora assombram nosso tempo.

FRANCISCO MARSHALL


31 DE AGOSTO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

NEUROBIOLOGIA DAS DROGAS

O prazer intenso dá origem ao aprendizado associativo que constitui a base do condicionamento
As drogas causadoras de dependência ativam o sistema de recompensa existente no cérebro.

Lícitas ou não, todas provocam aumento rápido na liberação de dopamina, neurotransmissor envolvido nas sensações de prazer. O prazer intenso dá origem ao aprendizado associativo (droga-prazer-droga), que constitui a base do condicionamento.

Com a repetição da experiência, os neurônios que liberam dopamina já começam a entrar em atividade ao reconhecer os estímulos ambientais e psicológicos vividos nos momentos que antecedem o uso da substância, fenômeno conhecido popularmente como fissura.

É por esse mecanismo que voltar aos locais em que a droga foi consumida, a presença de pessoas sob o efeito dela e o estado mental que predispõe ao uso pressionam o usuário para repetir a dose.

O condicionamento que leva à busca da droga fica tão enraizado nos circuitos cerebrais, que pode causar surtos de fissura depois de longos períodos de abstinência. A pessoa deixa de ser usuária, mas a dependência persiste.

As recompensas naturais - como aquelas obtidas com alimentos saborosos e o sexo - também estão ligadas à dopamina, mas, nesses casos, a liberação é interrompida pela saciedade. As drogas psicoativas, ao contrário, armam curtos-circuitos que bloqueiam a saciedade natural e mantêm picos elevados de dopamina até esgotar sua produção.

Por essa razão, comportamentos compulsivos por recompensas, como comida e sexo, são mais raros do que aqueles associados ao álcool, nicotina ou cocaína.

O condicionamento empobrece os pequenos prazeres cotidianos: encontrar um amigo, uma criança, a beleza da paisagem. No usuário crônico, os sistemas de recompensa e motivação são reorientados para os picos de dopamina provocados pela droga e seus gatilhos antecipatórios.

Com o tempo, a repetição do uso torna os neurônios do sistema de recompensa cada vez mais insensíveis à ação farmacológica da droga, fenômeno conhecido como tolerância.

A tolerância reduz o grau de euforia experimentado no passado, aprofunda a apatia motivacional na vida diária e leva ao aumento progressivo das doses e às mortes por overdose. É por causa da tolerância que todo maconheiro velho se queixa da qualidade da maconha atual.

Como parte desse mecanismo, os neurônios que formam o sistema antirrecompensa ficam hiper-reativos. A sensação de prazer, agora mais fugaz e menos intensa, vem seguida de uma fase disfórica, que se instala no espírito do dependente assim que o efeito da droga se dissipa. A pessoa deixa de buscá-la simplesmente pelo prazer do efeito, mas para fugir da apatia e da depressão que a atormentam quando ele se esvai.

A produção deficitária de serotonina resultante do uso crônico também se instala no lobo pré-frontal, área do cérebro que modula a flexibilidade, a seleção e a iniciação das ações, a tomada de decisões e a avaliação dos erros e acertos.

O desarranjo das sinapses dos neurônios pré-frontais enfraquece a resistência aos apelos da droga, mesmo quando a intenção de abandoná-la é verdadeira.

As alterações dos circuitos pré-frontais, ao lado das que acontecem na circuitaria responsável pelas sensações de prazer, recompensa e respostas emocionais, tecem o substrato para a instalação gradual do comportamento compulsivo, descontrolado, que compromete a motivação para enfrentar a abstinência, mesmo diante de consequências pessoais catastróficas.

Da mesma forma que nem todos correm igual risco de desenvolver diabetes ou doença cardiovascular, apenas uma minoria dos que usam drogas psicoativas se torna dependente. A suscetibilidade é atribuída à genética e a diferenças na vulnerabilidade. Fatores que aumentam o risco incluem história familiar (hereditariedade e criação), exposição em idade precoce (adolescência é o período mais vulnerável), características do meio (ambientes estressantes, violência doméstica, desorganização familiar, convívio com usuários) e transtornos psiquiátricos (depressão, psicoses, ansiedade). Os estudos mostram que cerca de 10% das pessoas expostas às drogas psicoativas se tornarão dependentes. No caso da nicotina, esse número é cinco a seis vezes maior.

DRAUZIO VARELLA

31 DE AGOSTO DE 2019
JJ CAMARGO


O QUE NUNCA MUDA

O convívio com a dor dos outros não nos enrijece, ao contrário do que alguns dizem sobre os médicos
No início da minha experiência com transplante de pulmão, fiz inúmeras captações do órgão, muitas vezes em cidades longínquas. Sempre me impressionei com a riqueza dos sentimentos que regem as relações dos profissionais envolvidos nessa missão.

A solidariedade sempre foi dominante, e os gestos de apoio, de uma espontaneidade comovente. Ofertas de lanches ou sacola de frutas para a viagem de volta eram frequentes, com todo mundo deixando claro o reconhecimento com a grandeza da tarefa: afinal, estávamos transportando a esperança de pessoas doentes e que dependiam daqueles órgãos para retomar a vida.

Nessas excursões, muitas delas em madrugadas insones, várias vezes minha atenção desviou para a proximidade dos familiares do doador, uns desconhecidos que perambulavam pelos corredores e eram identificados instantaneamente pelo ar de inconfundível tristeza.

Em Santa Maria, a mãe do doador, um jovem de 18 anos, interrompeu a nossa marcha na saída do bloco cirúrgico, colocou a mão espalmada sobre a caixa de isopor e se despediu:

- Vai lá, meu filho, e salva as pessoas como tu prometeste quando disseste o quanto querias ser doador. Depois disso, Deus vai cuidar de ti!

Outra vez, em Tubarão, saindo pelo corredor e arrastando o carrinho barulhento contendo as quatro caixas de múltiplos órgãos, nos deparamos com uns sete ou oito familiares que olhavam o cortejo médico, à distância. Havia tanta tristeza no olho daquela gente, que mudei o rumo e fui me despedir deles. Não consegui falar, mas vou sempre lembrar a força do abraço. No voo da volta, a frase final do pai do adolescente ficou martelando em mim:

- Doutor, por favor, cuide bem do que restou do meu filho. Ele queria ser médico.

Passado o tempo meio maluco em que viajávamos para a captação do pulmão e voltávamos exaustos para implantar o órgão, o grupo cresceu, as funções se diluíram e depois de 650 transplantes, a rotina ficou mais racional e até o cansaço foi democratizado.

Mas conversando com os mais jovens, que assumiram a captação, se percebe que aquelas emoções essenciais - essas permanecem intactas. A Fabíola Perin, que ostenta com um orgulho mal disfarçado o epíteto de "única cirurgiã brasileira que transplanta pulmões", trouxe a sua contribuição, só para confirmar que tudo o que envolve sentimento é para sempre:

"Semana passada fui para mais uma retirada de pulmões de um doador. Nenhuma delas é igual e não há como não se envolver com a história de quem está doando, porque é sempre o amor de alguém, o amigo de alguém, o filho de alguém. Nesse dia, deparei com um garotinho de quatro anos, o rosto não pude ver, porque estava parcialmente coberto pelo grande curativo do ferimento craniano, causa de sua morte, mas sua mãozinha, gordinha, com alguma sujeira nas unhas de quem há poucos dias devia estar brincando na terra, estava à mostra e esta meu coração viu. Tudo isso em silêncio, segui o meu trabalho".

Linda história, só para renovar a minha convicção antiga, do quanto aqueles que dizem que enrijecemos pelo convívio com a dor dos outros não têm a menor ideia do que significa, de fato, ser médico.

JJ CAMARGO

31 DE AGOSTO DE 2019
DAVID COIMBRA

A freira do terror



Na parede do consultório do meu dentista, está pendurado um quadro meio sinistro. O meu dentista, o Ramão, é craque, é camisa 10 da odontologia, mas pregou aquele quadro estranho bem na frente da cadeira em que os pacientes são instalados. Então, há alguns anos, lá estava eu, sentado, esperando pelo Ramão e olhando para o quadro, quando a secretária dele, a Letícia, entrou. Aí eu disse:

- Letícia, sabe que acho esse quadro meio sinistro?

Ela levou a mão ao peito: - Ai, meu Deus! Eu também acho!

E contou que sente muito medo de espíritos e outras coisas invisíveis. Quando vai ver um filme de terror, passa três ou quatro noites sem dormir, com medo de que o próprio capeta, de guampa e rabo pontudo, pule de uma sombra do quarto direto para sua cama. Mesmo assim, ela às vezes cede à tentação e assiste a um desses filmes horríveis. Foi o que havia acontecido dias antes da nossa conversa. A Letícia tinha ido ver A Freira e saíra do cinema muito, muito impressionada.

Os piores momentos para Letícia, quando ela está com receio das forças sobrenaturais, é quando fica sozinha no consultório.

- Eu geralmente chego antes do doutor Ramão - relatou-me ela, de olhos arregalados. - Aí, fico andando de uma sala para outra deste consultório silencioso, arrumando tudo, torcendo pra que ele chegue logo. Tento nem olhar pra esse quadro - apontou para a parede. - Ele me dá arrepios?

Pois deu-se que, exatamente um dia depois de assistir a A Freira, a Letícia chegou ao consultório mais assustada do que nunca. Aquele filme mexera mesmo com ela. O Ramão não aparecia e ela tinha um mau pressentimento. Parecia que algo ruim ia acontecer. As cenas do filme ficavam se repetindo na cabeça dela. Então, ela ouviu o barulho da porta da frente se abrindo. Era um paciente que entrava. A Letícia foi conferir quem era. Caminhou até a parte de trás do balcão. E, do outro lado, viu nada mais, nada menos do que? UMA FREIRA!

Não era um espírito do Mal, claro, era uma paciente do doutor Ramão, que provavelmente é uma pessoa do Bem. Mas foi por muito pouco que a Letícia não se jogou pela basculante, terceiro andar abaixo. Que teste de resistência para um coração puro, como é o da Letícia.

Esse medo da Letícia é um medo exclusivamente nosso: um medo humano. Os bichos também sentem medo, mas não desse gênero. Os bichos temem o que está acontecendo, não o que pode acontecer. Eles não se inquietam com o futuro. O silêncio de um consultório ou o escuro de um quarto, para os bichos, são bons para dormir e jamais o prenúncio inexplicável de que algo ruim sucederá.

Dias atrás, falamos disso no Timeline, da Gaúcha. Entrevistamos um colega jornalista, o Lourival Sant?Anna, que é correspondente de guerra e escreveu um livro intitulado Minha Guerra Contra o Medo.

Em seu livro, Lourival conta que desenvolveu uma técnica para controlar o medo. Isso aconteceu de forma empírica, quando ele percebeu que o maior medo que sentia não se dava em meio aos bombardeios ou durante o perigo real de um combate: dava-se à noite, no momento em que ele estava seguro, na cama, ou dentro do avião, antes de chegar ao local da cobertura, a salvo de balas ou bombas.

Lourival entendeu, então, que o medo que faz mal, o medo doentio, não corresponde à realidade, corresponde ao que o ser humano imagina no que possa se transformar a realidade.

Assim, Lourival criou formas de se concentrar apenas no presente. Ele se dedica a tarefas práticas que ocupam sua mente e afastam o medo. No bombardeio, ele conta o número de explosões e calcula o tempo entre elas. No avião, ele lê sobre o país que vai visitar e os personagens do conflito. Essas coisas palpáveis do dia a dia.

É bom o livro de Lourival. Vale a leitura. Vou indicá-lo para a Letícia. Talvez ela compreenda que, muitas vezes, as coisas invisíveis de que temos medo são invisíveis porque não existem.

DAVID COIMBRA


31 DE AGOSTO DE 2019
MÁRIO CORSO

Conselho para melhorar de vida

O conselho é breve, não custa nada e está nas suas mãos: largue ou diminua seu tempo nas redes sociais.

Escutei amigos e pacientes que fizeram um teste consigo mesmos: abandonaram ou dedicaram menos tempo às redes sociais para pensar como se sentiriam. A resposta foi unânime, melhoraram seu humor. Sentem-se com mais tempo para si e estão menos deprimidos.

As redes sociais não são necessariamente um problema, em alguns momentos podem até ser uma solução. Elas facilitam conectar pessoas, quem está viciado nelas apenas está viciado em sociabilidade. Não há nada mais humano do que elas, somos seres sociais, vivemos para o olhar do outro. Vivemos para ser amados e reconhecidos, esta é a "fraqueza" sem cura da humanidade.

Mas as redes sociais podem ser de uma sociabilidade rasa. Por exemplo, quando perdemos muito tempo nela para nos saciar, já é índice de que a qualidade do vínculo é fraca, diluída. Usamos muitas horas para compensar a superficialidade do que ela entrega.

Quem saiu dizia estar estressado, vivendo em uma histeria do presente. Não que fosse uma realidade mentirosa, embora às vezes sim, mas que havia uma sensação de urgência desnecessária. Como se o mundo estivesse sempre acabando e tudo pedisse uma resposta imediata.

A excitação da polarização política invade qualquer lugar, mas nas redes sociais ela se multiplica. A falta de olho no olho, o anonimato, produz comportamentos que não teríamos presencialmente. A rede não raro funciona com a psicologia da massa onde tudo é superlativo, a adesão sem pensar duas vezes, o julgamento sumário e o linchamento. Na turba, tudo é intenso, aos empurrões e ao berros. A lógica é binária, amor total ou ódio eterno.

A sensação que escutei dos desistentes era de estarem tornando-se ermitões urbanos. Ou seja, estavam afastando-se de todos, ao mesmo tempo que cercados de pessoas com as quais não interagiam de fato, mas na ilusão que estavam agindo no mundo.

As redes chegaram para ficar, não se trata de um modismo, mas de novas formas de sociabilidade. Prepare-se, outras formas ainda chegarão, não haverá retorno a um mundo anterior apenas presencial. Porém podemos escolher o quanto estar dentro delas.

Nem sempre as redes são apenas para passear entre pretensos amigos e arranjar admiradores, há quem as use profissionalmente e dependa delas para divulgar seus negócios. Aqui ela é vital. Não se trata de fechar a porta da lojinha, mas de usar a rede com parcimônia.

Caro leitor, faça uma experiência, pratique um jejum por uns dias e sinta se o mundo virtual te ajuda ou atrapalha. Talvez você sinta aquela sensação dos tempos da escola, de que "todo mundo" estará na festa e que, se você faltar, será excluído para sempre. Bobagem, descarrilhar da manada não é o fim do mundo e pode ser o começo de outro.

MÁRIO CORSO


31 DE AGOSTO DE 2019
SALGADO FILHO

Apagar das luzes depois de seis décadas

Prédio antigo do aeroporto, o terminal 2 vai deixar de receber voos nas próximas semanas. Uso será só para escritórios e torre de controle
jessica.weber@zerohora.com.br

Após seis décadas de partidas e reencontros, o prédio antigo do aeroporto Salgado Filho deixará de receber voos nas próximas semanas. A data da mudança ainda não foi divulgada pela Fraport, que administra o aeroporto. A concessionária informa apenas que será "em meados de setembro". Transferindo as operações da companhia Azul ao terminal principal, em fase final de ampliação, a empresa pretende utilizar o chamado Terminal 2 para seus escritórios e torre de controle.

Da visita do papa João Paulo II à partida de Jango após o golpe de Estado, o aeroporto velho testemunhou importantes passagens da história do Rio Grande do Sul e do Brasil. Voltado para a Avenida dos Estados, o terminal começou a funcionar em 1953, substituindo o chamado aeroporto São João, e passou por sucessivas reformas ao longo das décadas seguintes. Chegou a ser desativado em 2001, com a abertura do novo terminal junto à Avenida Severo Dullius, mas voltou a ser utilizado para voos domésticos em 2010, complementando as operações.

A história do aeroporto se confunde com a do professor do curso de Ciências Aeronáuticas da PUCRS Claudio Scherer, 77 anos, piloto da Varig de 1966 a 1997. Ali ele passava tardes inteiras assistindo a decolagens e aterrissagens, pelos 12, 13 anos de idade. Circulava pelo terraço panorâmico (à época, não envidraçado) e caminhava até a cabeceira da pista - algo inimaginável com os procedimentos de segurança adotados hoje. Sentado no concreto, ele esperava os aviões se aproximarem. Conhecido do fiscal, também circulava entre os aviões parados, tirando fotos com sua máquina de caixote.

Scherer lembra de uma linda praça no lugar do estacionamento. Recorda que o prédio tinha mais iluminação natural - hoje, acha que "parece uma caverna" - e que a escadaria que leva ao segundo andar dava em frente a um restaurante chique. Fazia parte da programação de final de semana do porto-alegrense ir de carro até o Salgado Filho para comer ali.

O aeroporto nessa época era um orgulho, e voar, coisa para milionários, conta Scherer:

- Nos anos 1960, as pessoas viajavam com traje de noite, botavam tailleur, casaco de pele, faziam penteado. Os homens iam de terno e gravata. Era um desfile de moda.

Junto ao Salgado Filho, ficava também a base da Varig, que ali viveu tempos de luxo. Como o preço das passagens aéreas era tabelado, companhias tentavam ganhar os passageiros no serviço de bordo, explica o ex-piloto.

- No tempo do Electra, que fazia Porto Alegre a São Paulo em 1 hora e 50 minutos, o avião decolava de meio-dia e tinha serviço de almoço quente. Vinha canapé, vinho, uísque, cerveja. Recolhidas as bandejas e os talheres de aço, passava um carrinho oferecendo pâtisserie, frutas, sorvete.

Decadência

A Varig encerrou suas atividades em 2007, e o terminal antigo já não tem nem sombra da opulência que tinha. Com os dias contados, há sinais de abandono: elevador que não funciona, grande quantidade de entulhos depositada em sala junto ao terraço panorâmico, fiação à mostra em alguns pontos. De madrugada, com movimento ainda menor do que o normal, há apenas uma lancheria aberta e relatos de atuação de flanelinhas na rua.

- Os prédios importantes como o aeroporto fazem fama, entram em decadência e não voltam mais. Tem a curva de evolução e a curva de decadência - comenta Scherer.

O paulista Dino Bruzadin Filho, 59 anos, fez escala pela primeira vez no Terminal 2 neste mês. Achou a sala de conexão apertada, as áreas comuns, "antigas e abandonadas", e as opções de alimentação, limitadas. O engenheiro eletricista paranaense Antonio Maurício Machado, 56 anos, avalia que faz sentido desativar o terminal:

- Nunca achei que ele fosse compatível com uma capital como Porto Alegre. E, para quem não é da cidade, a divisão do aeroporto entre os dois terminais sempre foi motivo de confusão.

Já a professora de séries iniciais Sandra Peres, 50 anos, de Canoas, ficou chateada quando informada pela reportagem que o terminal não receberia mais passageiros. Sentada no saguão de entrada, ela disse achar o ambiente aconchegante. Estava admirando a obra de arte gigante na parede a sua esquerda quando foi abordada.

Recepções e despedidas para a história 

Em abril de 1964, o velho Salgado Filho testemunhou, em menos de 24 horas, uma montanha-russa de emoções. Na madrugada do dia 2, o presidente João Goulart, o Jango, recém deposto pelos militares, chegou de Brasília ao aeroporto em um avião Avro da Força Aérea Brasileira (FAB). Era esperado no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola e pelo comando do Terceiro Exército, que permanecia aliado do presidente. Um movimento semelhante ao de 1961, na Campanha da Legalidade, se formava: o povo se mobilizava nas ruas pela permanência de Jango no poder, comenta Flávio Tavares, autor de livros como 1964: o Golpe:

- A tensão toda se voltava para o aeroporto, para a chegada de Jango.

De acordo com reportagem do jornal Última Hora, o avião pousou precisamente às 3h15min. Cinco tanques e aproximadamente 200 soldados esperavam Jango para garantir sua segurança. Primeiro a desembarcar, o presidente deposto entrou no saguão do aeroporto abraçado com o então deputado Leonel Brizola, "sorrindo largamente".

Tavares, o último jornalista a conversar com Jango na saída do Palácio do Planalto, afirma que ele partiu a Porto Alegre se dizendo disposto a resistir - mas não foi o que ocorreu. Após reuniões e dormir por duas ou três horas na Capital, Jango retornou ao Salgado Filho e foi no mesmo avião a São Borja. De lá, seguiria para o exílio no Uruguai. O prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, leu o pronunciamento do presidente, em que justificava ter optado pelo não derramamento de sangue.

- A decisão do Jango de tomar o Avro da FAB e ir para São Borja mudou a história do Brasil naquele momento, porque deu o triunfo ao golpe de Estado. Se não tivesse viajado para São Borja, se não tomasse o avião, teria necessariamente que resistir - diz Tavares.

A partida de Jango foi um dos maiores acontecimentos presenciados ali pelo jornalista Nelson Moura, que, entre as décadas de 1950 e 1970, foi setorista de aeroporto. Sua função na Folha da Tarde era fazer plantão praticamente todos os dias no terminal antigo do Salgado Filho, atrás de entrevistas inéditas e furos de reportagem com passageiros ilustres que partiam ou chegavam.

Assim flagrou Ted Kennedy, senador americano de 1962 até 2009 e irmão do presidente assassinado John Kennedy, tomando uma cerveja Faixa Azul em uma conexão entre o nordeste brasileiro e Buenos Aires. Também aparece em fotos ao lado do meio-campista Didi, cercado de crianças deslumbradas, pouco depois de a Seleção Brasileira conquistar o Mundial na Suécia, em 1958.

Quando Ernesto Geisel, à época ainda presidente da Petrobras, se recusou a dar entrevista, Moura não poupou nas folhas do jornal: "chegou mal-humorado a Porto Alegre".

- O aeroporto era o cartão de visitas de Porto Alegre e uma fonte de informações importantes. Tudo acontecia aqui, furos internacionais, passagem de artistas, de políticos. Aqui termina a história dele, é uma lástima. Mas vai pro progresso, para um mais novo, né?! - diz o jornalista aposentado, aos 88 anos.

JESSICA REBECA WEBER

31 DE AGOSTO DE 2019
RODRIGO CONSTANTINO

O herói trágico

Muitos consideram Trump uma ameaça às instituições, mas uma teoria alternativa é que ele está mais para um sintoma do seu enfraquecimento. É justamente porque boa parte do povo perdeu a confiança nos políticos, acadêmicos e mídia, que Trump foi eleito em primeiro lugar. Ele representa o outsider que veio abalar o sistema, drenar o pântano de Washington, como seu slogan dizia.

O historiador Victor Davis Hanson, em The Case for Trump, fala da figura do herói trágico, bebendo dos clássicos como Sófocles e Homero. Esses personagens representariam, assim como nos filmes modernos de faroeste, aquelas figuras que não são agradáveis, tampouco intrinsecamente nobres, mas que aparecem para desafiar os que representam uma ameaça ainda maior à sociedade.

Eles são percebidos como perigosos, costumam se preocupar mais com suas tribos do que com a cidade, demonstram lealdade pessoal, não espírito republicano. O que os torna trágicos e heroicos ao mesmo tempo é seu conhecimento de que a expressão natural de suas personas pode levar apenas à própria destruição ou ao ostracismo na civilização que pretendem proteger. Há algo fatalista em seu caráter: não conseguem mudar, devido à megalomania ou visão absolutista da experiência humana.

Os heróis trágicos não necessariamente querem ser heroicos. Suas motivações podem ser egoístas, autocentradas e surgir por um desejo pessoal de vingança ou busca por adulação. Eles geram desconforto enquanto estão por perto, e podem ser reconhecidos somente quando seguramente afastados e seus feitos podem ser atribuídos a outros. Mas seu comportamento pouco civilizado pode, por um período, salvar a civilização.

São, enfim, aqueles com coragem suficiente e ausência de freio moral para fazer o "trabalho sujo" que precisa ser feito. Pensemos num bando de arruaceiros que chega numa cidade cujo xerife, certinho demais, mostra-se incapaz de enfrentá-los. Aquele que só por acidente do destino não é parte do bando tem o perfil para derrotá-lo, agindo à margem da lei. É o herói de Fauda, a série israelense sobre terrorismo.

Sim, eles são perigosos e podem ameaçar as instituições. Mas podem ser a única salvação dessas instituições quando outros representam ameaça ainda maior.

RODRIGO CONSTANTINO


31 DE AGOSTO DE 2019
INFORME ESPECIAL

Bolsonaro, o ressuscitador

O PIB reagiu, a reforma da Previdência avança e outras boas notícias vêm do governo. Mas, desde que assumiu, nosso presidente tem demonstrado uma capacidade ímpar de jogar luz sobre quem jazia nas sombras, ou para elas se encaminhava.

Emmanuel Macron, por exemplo, virou o grande líder mundial na defesa da Amazônia depois que o Bolsonaro abriu o palco para ele. O presidente francês certamente estourou um champanhe em homenagem ao colega brasileiro.

O presidente da OAB nacional, Felipe Santa Cruz, ficou famoso e ganhou apoio depois que Bolsonaro fez insinuações grosseiras sobre as circunstâncias da morte de seu pai. Até o nosso querido Festival de Cinema de Gramado reviveu os bons tempos da luta política e foi outra vez para as manchetes.

A dupla personalidade do governo Bolsonaro me faz lembrar O médico e o Monstro. Quem é o médico e quem é o monstro? Pergunta lá no Posto Ipiranga.

Mérito ao quadrado

A Federação Brasileira das Associações de Criadores de Animais de Raça lançou, na Expointer, a medalha Paulo Brossard.

A Expointer deu show. Expectativa de recorde de público, bons negócios e clima e otimismo.

A parceria público-privada da iluminação em Porto Alegre renderá economia à prefeitura e melhores serviços à população.

Um convênio entre a prefeitura de Canoas e a Susepe possibilitou que o detentos trabalhassem na recuperação das paradas de ônibus queimadas por bandidos.

Sete gaúchos ganharam troféus no 1º Prêmio CAMP, Clube Associativo dos Profissionais de Marketing Político do Brasil. As empresas Critério e Esplanada representaram o RS.

Em dois meses, 10 detentas do Instituto Penal Feminino de Porto Alegre produziram 74 toucas e perucas de crochê para crianças em tratamento contra o câncer. A meta inicial do projeto Laços de Princesa era a confecção de 20 itens.

2,4 milhões
é o número de empreendedores no RS atualmente, informa a pesquisa Global Entrepreneurship Monitor, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade e pelo Sebrae/RS. O dado representa um crescimento de 26,3% em relação a 2016, ano da primeira edição do estudo.

TULIO MILMAN

sexta-feira, 30 de agosto de 2019


lançamentos


O Papa na Igreja Católica (Est Edições, 80 páginas), do professor doutor Monsenhor Urbano Zilles, nascido em Nova Petrópolis em 1937, descreve a evolução histórica do papado na teoria e na prática, a questão do primado, a questão da infalibilidade e o papa como unidade entre os cristãos, com linguagem clara, acessível, profunda e abrangente.

O futuro das humanidades - Ciências humanas - Desafios e perspectivas (Educs, 270 páginas), organizado pelos professores Jelson Oliveira e Ericson Falabretti, traz textos deles e de especialistas sobre cibercultura, religião, história, filosofia, teologia, direitos humanos, colonialidade e outros temas relevantes da atualidade.

Imaginação - Reinventando a cultura (Pólen, 128 páginas), de Marta Porto, crítica de cultura, ativista, pensadora e coordenadora de escritórios da Unesco, traz 14 ensaios sobre artes, imaginação, cultura, bibliotecas e outros temas. Marta propõe que a imaginação seja a base de uma cultura mais democrática, inclusiva, abrangente e, assim, mais humana.

a propósito...

Não tem dúvida de que é preciso aliar a desejada e essencial preservação ambiental com o desenvolvimento social, cultural e econômico da região. Quem não sabe que há riquezas imensas que podem ajudar o Brasil e os brasileiros, se houver um debate razoável e consequente? 

O desafio é enorme, antigo, já derrubou políticos, ministros e já teve suas idas e vindas. Num momento em que tudo está sendo exposto, por todos, toda hora, e, neste tempo em que buscamos soluções para queimadas e outros problemas, tomara que baixe um espírito calmo, científico, democrático e que nós, brasileiros, soberanos, consigamos fazer diferente, ao contrário de alguns que já destruíram muito e agora ficam nos criticando indevidamente. 

Jaime Cimenti


Churchill, Orwell e a luta pela liberdade

Neste mundo velho sem porteira, as milenares questões da liberdade e da verdade seguem dominando a história e, entre idas e vindas, as aberturas e os fechamentos, as democracias e as ditaduras de vários tipos, os debates e as ações seguem, acalorados.

Churchill & Orwell - A luta pela liberdade (Editora Zahar, 336 páginas, tradução de Rodrigo Lacerda), best-seller do The New York Times, do consagrado jornalista Thomas E. Ricks, especialista em assuntos militares, em segurança nacional e participante de equipes ganhadoras do Prêmio Pulitzer, é uma oportuna e interessantíssima biografia dupla do estadista e escritor Winston Churchill e do genial escritor George Orwell, autor, entre outros, das obras-primas 1984 e A revolução dos bichos.

O primeiro-ministro Churchill era filho de aristocratas e liberal conservador aliado ao governo colonialista britânico. Orwell vinha da classe média baixa, era militante socialista e fortemente anti-imperialista. Os dois homens tinham posições políticas muito diferentes, mas com um princípio em comum: a luta pela liberdade.

Ao entrelaçar as biografias dos dois, Ricks, centrando a ação nas décadas de 1930-1940, mostra como eles saíram de posições precárias para triunfar sobre os inimigos da liberdade. Churchill pode ter desempenhado o papel mais importante na derrota de Hitler, mas os livros imortais de Orwell seguem sendo assombrosos tratados antiautoritários.

Churchill e Orwell, homens extraordinários, aliados inesperados, hoje tão importantes como naquelas décadas críticas do século XX, com suas ações e com seus textos, influenciaram de modo decisivo não apenas a cultura e a política de sua Inglaterra natal, mas de todo o Ocidente. Em uma Europa do fim dos anos 1930, com democracia desacreditada, que parecia destinada à ditadura, fosse nazifacista ou comunista, os dois homens notáveis estavam em posição solitária e marcaram os rumos da história. Eles nunca se encontraram, mas suas visões sobre liberdade, sociedade e limitações da política convergiam e seguem inspiradoras.

Queimadas

No mundo, queimadas devem ser mais antigas que andar a pé. Com origem em causas naturais, como ventos fortes e secas, ou com origem em causas humanas, como deixar restos de fogo nas florestas, atirar tocos de cigarro acesos e utilizar fogo como técnica agrícola, as queimadas são antigas. No Brasil, os índios já utilizavam as queimadas antes de o homem branco aparecer por aqui.

Em vários países do mundo, como Estados Unidos, Portugal e França, só para citar alguns, queimadas acontecem. Claro que ninguém, em sã consciência, pode ser a favor do desmatamento ilegal e de queimadas, sejam elas de que tipo for. Ninguém pode querer o fim da natureza e do mundo. Já em 1976, em seu livro Manifesto ecológico brasileiro: o fim do futuro?, o agrônomo José Antônio Lutzenberger (1926-2002), que, durante décadas, trabalhou para a Basf vendendo adubos e depois se tornou ambientalista e foi ministro do Meio Ambiente, alertou as pessoas para a gravidade da situação ambiental.

Não chega a ser muito estranho o exagero das repercussões nacionais e internacionais sobre as queimadas no Brasil da atualidade. Como já foi dito no Começo de Conversa do Jornal do Comércio de 27 de agosto, Monsieur Macron e Frau Merkel têm lá interesses muito além de preocupações com a ecologia, em vista da ameaça no acordo Mercosul-União Europeia.

Ajuda internacional, preocupações com a natureza, legislação ambiental para todos no mundo - especialmente para os países que muito destruíram a natureza - obviamente são desejáveis, e precisamos defender a natureza como um patrimônio e uma questão de sobrevivência mundiais. Todavia, a soberania brasileira sobre seu território amazônico não pode ser violada, e os outros países devem respeitá-la.

Lembro de uma piada, lá dos anos 1960. O brasileiro foi pedir dinheiro emprestado para o Tio Sam. Aí o Tio perguntou, com muitos erres: "Mas o que me darrr em trrrroca, brasileirinho?". "Bom, quem sabe lhe dou a Amazônia", respondeu o brazuca, e, aí, o Tio Sam falou: "Malandrrrrinhoo você, querendo dar o que já é meu...".

Claro que se espera que diálogos sobre a questão sejam em alto nível e não resvalem para ataques pessoais. O certo é que a questão deve ser tratada com racionalidade, seriedade e números confiáveis. É preciso avaliar muito bem os interesses do governo, dos legisladores, dos índios, dos investidores e de organismos internacionais. Num mundo como o nosso, com mil verdades e versões, não é tarefa das mais fáceis, mas é preciso ir adiante.

Fico pensando em como está o gigantesco Projeto Jari, envolvendo 1,5 milhão de hectares, iniciado pelo bilionário norte-americano Ludwig e que depois foi repassado a empresas privadas brasileiras. Vou pesquisar, dizem que não deu certo.

Aliás, existe uma mística que diz que a floresta se vinga das pessoas e empresas que estão lá só para explorá-la e ir embora, sem se preocupar com seu futuro. Será?


30 DE AGOSTO DE 2019

DAVID COIMBRA


Um homem de 350 quilos


Vi um programa de TV sobre pessoas muito gordas. Um dos personagens da reportagem tinha 31 anos de idade e 350 quilos. Ele mal conseguia caminhar e passava de lado pelas portas. Quando caía, só levantava de novo se quatro homens viessem ajudá-lo. Seus pés pareciam dois mamões papaia, era preciso rasgar uns crocs para calçá-los.

Eles filmaram o gordo pelado, lavando-se. Uma visão espantosa. Gigantescas dobras de gordura desabavam-lhe costas e barriga abaixo. Ele provavelmente não enxergava o próprio pênis havia anos. Nem olhando-se no espelho conseguiria vê-lo, porque a massa de gordura descia até as coxas.

Eu não tirava os olhos da TV, assustado. O gordo procurou um médico em Houston, Texas, para fazer uma cirurgia de diminuição do estômago. Ele morava no Tennessee, e a viagem duraria 15 horas de carro. A mãe do gordo dirigiria - para ele seria impossível acomodar-se atrás do volante. Ela também era bem gorda, mas não tanto, calculo que pesasse uns 150 quilos.

Bem. O gordo não caberia no banco de um carro comum, então eles improvisaram uma cama na parte traseira de uma van, onde ele se instalou com dificuldade. E lá eles se foram.

No caminho, paravam para abastecer e o gordo comia um hambúrguer. Ou tomava um milk shake. Ou engolia um sanduíche. Ou um bolinho de alguma coisa. Cada vez que o via comendo, me dava uma angústia. Do sofá, impotente, eu pedia:

- Não faça isso! Não faça isso!

Mas ele fazia. Foi comendo até o hospital. Cara, ver aquilo estava me dando nojo de comida.

Na consulta, o médico disse que seria impossível operá-lo, porque, com seu peso, o coração não aguentaria a cirurgia. Ele tinha de perder pelo menos 68 quilos para se submeter à operação. O gordo ficou chateado, mas prometeu fazer um regime e voltar dois meses depois.

E aqueles dois meses se passaram e o gordo fez a dura viagem de novo e apresentou-se ao médico. Subiu na balança e? havia engordado sete quilos!

Cristo! O médico perguntou: - Mas o que é que você come???

E ele: - Umas coisinhas, como apenas duas vezes por dia? Verdade que faço umas boquinhas entre as refeições, mas como só duas vezes por dia?

O médico olhou de lado: - Sei!

É claro que ele não acreditou. Eu, que assistia pela TV, fiquei espantado, porque o gordo acreditava mesmo que comia pouco. Ele foi filmado empanturrando-se com tudo que é fast-food gorduroso, mas jurava que não era um comilão. Depois da consulta, o médico explicou para as câmeras que é assim mesmo: não é que as pessoas queiram enganar outras pessoas sobre o que estão fazendo, elas enganam a si próprias.

Enquanto o gordo continuava sua saga, pus-me a pensar que esse mecanismo de autoilusão funciona em muitos outros compartimentos da vida. A pessoa jura que é vítima, quando, na verdade, é a agressora. A pessoa jura que está fazendo o certo, quando, na verdade, está prejudicando a si e aos que a cercam.

O cérebro faz esses truques conosco, usando uma ferramenta que se chama "justificativa". O chefe que oprime o subordinado diz que o faz pelo bem da empresa; o político se corrompe em nome da "governabilidade"; fazendeiros, madeireiros e garimpeiros queimam a floresta para produzir e sustentar suas famílias; o governo que grita contra a fiscalização ambiental diz que esse é um grito em nome do desenvolvimento. A filosofia autoriza a ação. E fornece uma cegueira providencial ao seu autor. Como o gordo que não acredita que come tanto, eles, como diria Jesus, não sabem o que fazem.

O gordo acabou se conscientizando. Submeteu-se a um regime, perdeu 91 quilos, e o médico o operou. Aí está uma lição: autocrítica faz bem. Autocrítica salva.

DAVID COIMBRA

30 DE AGOSTO DE 2019
CAROLINA BAHIA

Aparências, nada mais


Depois de passar semanas fritando o ministro da Justiça, o presidente Jair Bolsonaro fez questão de fazer um gesto público em apoio a Sergio Moro. Em cerimônia no Palácio do Planalto, ele desceu a rampa interna ao lado do titular da pasta e escancarou:

- Vou descer de mãos dadas com Moro. No meio do caminho, o presidente abraçou o ex-juiz e parou para fotos. O apoio a Moro também veio dos colegas ministros, 11 compareceram, além da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, governadores, prefeitos e parlamentares. Bolsonaro sabe que não pode demitir o ministro, que tem alta popularidade junto ao público do presidente. 

Moro, no entanto, vem sendo desprestigiado com a redução de orçamento e ameaças de interferência na Polícia Federal. O presidente quer ter controle sobre as investigações envolvendo o filho Flávio Bolsonaro e não gostaria de ter um Moro fortalecido na disputa presidencial de 2022. Quem conhece as senhas do Planalto, sabe que a cena de ontem serve para manter as aparências.

Não está confortável a situação de Jerry Adriane Rodrigues à frente do Denatran. O gaúcho nega, no entanto, que pediu demissão. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, afirmou que não falou com ele sobre o assunto e que os trabalhos seguem normalmente. Jerry estaria descontente com os rumos do Denatran, além de não ser consultado sobre mudanças.

Indisposição

Chamou atenção a ausência do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, no evento no Planalto. Interlocutores da PF informaram à coluna que ele teve uma indisposição após o almoço e foi representado pelo diretor-executivo, Disney Rosseti. Valeixo entrou na mira do presidente durante a polêmica do superintendente da PF no Rio, quando Bolsonaro afirmou que, se não poderia fazer essa troca, então demitiria o diretor-geral.

CAROLINA BAHIA

30 DE AGOSTO DE 2019
EDUARDO BUENO

Burrice ostentação


Trabalho com história do Brasil, mas não sou historiador - a não ser que seja com I maiúsculo, ou, vá lá, com Y. Também gosto de dizer que sou ex-jornalista e ex-toriador. De todo modo, depois de ter lido cerca de 2 mil livros e escrito mais de 20 sobre o assunto, julgo estar qualificado para opinar sobre tão pungente tema. E deve ser por isso que, nas palestras que dou por aí, sempre tem alguém para perguntar: "O que falta para o Brasil dar certo?". Tenho a resposta na ponta da língua, é claro. Mas, como ainda não chegaram ao meu preço, recuso-me a dá-la.

Mas essa não é a única indagação de que sou alvo. Outra questão frequente é: "Como você acha que os historiadores do futuro farão para escrever sobre o Brasil de hoje?". Por considerar essa uma pergunta banal demais - sim, acho que o Brasil pode ser difícil de explicar, mas, em especial agora que arde nas chamas da ignorância, me parece ser um país bem fácil de entender -, resolvi complicar um pouco as coisas para mim. Assim, mudei a pergunta para: "Como os historiadores do futuro escreveriam sobre o Brasil se dispusessem como fontes apenas de um certo site de direita e de um site errado de esquerda?".

Você já deve ter ouvido falar desses portais - se não, sorte a sua; mantenha-se longe (se sim, nunca é tarde para abandoná-los). Eles se anunciam, alternadamente, como "opinativos", "democráticos", "progressistas" e "investigativos". Em mim, dão apenas engulhos. Há quem diga que foram feitos à imagem e semelhança de seus criadores. Sabendo-se quem são e lendo o que escrevem, não é difícil acreditar na tese.

Embora criados por jornalistas (na real, ex-jornalistas, que jamais serão ex-critores, como eu), esses sites odeiam, atacam, vilipendiam e desprezam a imprensa. Só que não sobreviveriam sem ela. "Como diz a Folha", "segundo o Globo", "conforme declarou à Rádio Gaúcha" são frases que abundam nas bostagens, ops, nas suas postagens. Porque, na absoluta maioria dos casos, eles não investigam nem apuram nada: quando muito, saem da "redação" com a matéria já pronta só para coletar delações premiadas de seus aliados, a quem chamam de "fontes".

Mas sabe que no fundo acredito que esses portais estão prestando um serviço para os tais "historiadores do futuro"? Afinal, bastará eles verem o que seus leitores postam ali para entender que estamos vivendo o apogeu da canalhice, sob a égide da burrice ostentação.

EDUARDO BUENO