terça-feira, 5 de fevereiro de 2019


05 DE FEVEREIRO DE 2019
CARPINEJAR

Nonna


O cheiro é o mais forte condutor da memória. Podemos fugir das lembranças visuais, esquecer, bloquear, fechar os olhos para elas, jamais das lembranças olfativas. Não há como prender o nariz para mergulhar no inconsciente.

Eu fui assaltado por uma saudade absurda de minha nonna, que faleceu de câncer em 1979, quando senti o perfume da pomada Vick. Não sei por que eu tinha um vidro no fundo de um estojo no banheiro. Aquilo deveria ser muito antigo ou deixado por algum gnomo de propósito para rezar o passado.

Desenrosquei a tampa e inalei, e a minha vó veio inteira em minha frente. Sua pele doce e macia. Até me recordei do jeito como me chamava, com o sotaque guaporense, acentuando a última vogal do nome: - Fabríciô!

Quando eu tinha medo de dormir no escuro, ela massageava o meu peito com Vick. Aquilo me acalmava. O descongestionante subia como um incenso em minha pele. Respirava devagar. Serenava. As pálpebras cediam ao vendaval da substância. Ela me encarava - com seus olhos de figo em calda - até eu dormir e me cobria e ajeitava o travesseiro. Eu percebia que ela fazia isso, lá de longe, de dentro da dormência. Gestos de proteção e cuidado que me diziam que estava seguro e não deveria temer nenhum pesadelo.

No momento em que aspirei aquela substância cinza e pastosa, pude reconstituir o quarto, os travesseiros de penas de ganso, a cama alta de madeira, o abajur com um interruptor caindo pela parede a partir de um fio, as janelas sem cortinas, o piso de parquê encerado, o peso de porta de arroz com colcha de retalhos. Antevia o que havia na gaveta do criado-mudo: um terço, uma caderneta de endereços azul, uma folhinha de Nossa Senhora de Fátima, um abridor de cartas e pedras de naftalina. Era capaz de segurar cada um dos objetos mentalmente, nítidos, reais, como uma segunda chance na vida. Desconhecia o quanto permaneciam guardados em mim. Afinal, ao experimentar essas cenas, deveria contar com, no máximo, quatro anos.

Durmo no escuro não porque perdi o receio, não porque adquiri coragem, não porque virei adulto e preciso dar o exemplo aos filhos, mas como homenagem à nonna. Estamos para sempre abraçados na sombra.

CARPINEJAR

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