09 DE FEVEREIRO DE 2019
DAVID COIMBRA
Ai de ti, Brasil!
Rubem Braga morou em Porto Alegre. É um galardão da cidade. O Velho Braga, como chamava a si mesmo, é um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, talvez o maior, porque alcançou refinamento de estilo escrevendo apenas crônicas.
Quando se mudou para Porto Alegre, o Velho Braga não era velho: era um rapagão de 26 anos de idade. Veio fugido de um amor atormentado do Rio. Mais especificamente, de um marido atormentado do Rio.
Rubem Braga era um homem que se dedicava às mulheres. A uma mais do que todas: a atriz Tônia Carrero, considerada por seus contemporâneos como a mulher mais linda do Brasil, quiçá do planeta. Rubem a conheceu em Paris. Era casada, mas esses pormenores jamais o intimidaram. Ele gostava de lhe dizer: "Tenho muita amizade pelo seu joelho esquerdo". Brincadeiras neste tom, somadas a textos apaixonados, urdidos com sua delicadeza característica, foram seduzindo Tônia, até que ela cedeu.
O amor durou pelo resto da vida, mas eles jamais se casaram. Rubem Braga escreveu quilos de crônicas para Tônia. Escreveu para várias outras, também, mas mais para ela. Numa, de que gosto em especial, colocou-lhe o pseudônimo de Beatriz. Começa assim:
"Relembro hoje aquela a quem chamarei Beatriz, alegria de minha vista e de minha vida, saudade alegre, prazer de sempre, clarinada matinal, doçura".
Não é bonito? Uma mulher tem obrigação moral de se entregar a um homem que lhe dedica um presente desse quilate.
Rubem Braga era muitas vezes lírico e vez em quando cáustico. Foi perseguido pela primeira ditadura do Brasil, a de Vargas, e criticou a segunda, a dos militares. Nunca teve partido, sempre teve posição. Prova-o um dos diamantes que produziu em forma de crônica, intitulada O Conde e o Passarinho. Nela, Rubem Braga avisa:
"Devo confessar preliminarmente que, entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho".
Hoje, Rubem Braga seria chamado de comunista e o mandariam para Cuba. Como será que Rubem Braga lidaria com as redes sociais?
Escrevo sobre ele por causa de uma crônica, acerca de uma cidade: o Rio de Janeiro. Getúlio Vargas dizia que o Rio "é o tambor do Brasil", e de fato é. O Rio, a cidade mais linda do mundo, a Tônia Carrero entre as cidades, é também uma reprodução de tudo o que há de bom e de ruim no Brasil. O Rio é belo e trágico, alegre e desesperado, grandioso e suburbano, desejável e insuportável. Do Rio o brasileiro sente medo e orgulho. O Rio continua sendo a central do Brasil.
A capital federal nunca deveria ter sido removida do Rio de Janeiro. Nunca. Mas foi. Um erro. Dois anos antes, em 1958, Rubem Braga escreveu uma crônica que antecipava a degeneração que enfrentariam a cidade e também o país. Chama-se, a crônica, Ai de ti, Copacabana. Rubem Braga era morador do bairro, vivia numa agradável cobertura de onde avistava a praia e a linha do horizonte. Em um pedaço desse texto, ele não escreve, grita:
"Antes de te perder eu agravarei tua demência - ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão".
Parece que Rubem Braga previa o que se sucederia no Brasil de Brasília: o país acossado por desgraças e o Rio mais desgraçado ainda, como se estivesse em eterna penitência pelas iniquidades cometidas por nós, ímpios cidadãos. Incêndio nos alojamentos do Flamengo, enchentes, desabamentos de encostas, tiroteios, Mariana, Brumadinho, boate Kiss, mortes, choro e ranger de dentes. Quando terminaremos de pagar por nossos pecados? Ai de ti, Copacabana! Ai de ti, Brasil! Ai de nós, brasileiros!
DAVID COIMBRA
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