23 DE FEVEREIRO DE 2019
CARPINEJAR
Humildade da doença
Já fiquei doente. Já tive que largar uma sessão de cinema pela metade. Já tive que abandonar uma refeição antes do fim. Já tive que suspender um passeio. Já fiquei doente, confinado a uma cama, soprando canja, controlando intervalos dos remédios, sem hipótese de circular.
Quando melhorei, vibrei ao degustar um prato predileto, ao assistir a um filme, ao sair com os amigos. Recuperava a liberdade de ser inteiro - situação que eu sempre desfrutei, mas esnobava pela sua completa naturalidade.
Talvez tenhamos que ter a humildade da doença na mais completa saúde.
Mesmo com as condições físicas perfeitas, na hora de jantar, permitimos a comida e a conversa esfriarem para tratar de outras preocupações.
Em vez de aproveitar a família, nossa cabeça anda buscando resolver as contas, o trabalho do dia seguinte, as demandas absolutamente adiáveis da rotina. Abrimos várias janelas e links de interesses diversos e não nos concentramos na tela do rosto da esposa e dos filhos. Simplesmente não estamos presentes, estamos aflitos com o que devemos fazer.
Quem tem saúde acaba adiando o que é essencial, jurando que é invencível e que contará com todo o tempo do mundo para reparações. Não existe essa segunda chance. Ou caprichamos presencialmente ou desperdiçaremos os nossos grandes amores.
Assim como ninguém é imortal. Morreremos de repente. Não tem como planejar despedidas. O fato de antecipar tudo nos deixa tristes. A pressa vem nos desalojando por dentro. Não coincidimos o corpo com os pensamentos.
Querendo economizar meia hora, perdemos vidas inteiras ao nosso lado.
Podemos viajar de ônibus, mas cogitamos como seria mais fácil de carro. Usamos o carro, mas desejamos andar mais rápido de avião. Deslocamo-nos de avião e não basta, desejamos um voo particular, sem conexões e horários. Somos transportados em jatos particulares, mas daí sonhamos com um helicóptero, para não sacrificar alguns minutos.
Não há limites para as nossas falsas urgências, apesar dos trajetos curtos. A ambição nos leva para longe de nós mesmos e de quem gostamos. Os instantes que são economizados jamais retornam para o lar, são gastos em novas neuroses de sucesso.
Nossa alma nunca se sacia com o que alcançou e despreza a simplicidade anônima e deliciosa das pequenas tarefas. Até adoecermos de verdade e percebemos que ser feliz é somente se dedicar ao presente, nem ao passado, nem ao futuro.
CARPINEJAR
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