terça-feira, 24 de dezembro de 2019



24 DE DEZEMBRO DE 2019

DAVID COIMBRA

Com quem eu sou parecido

Fui cortar o cabelo e quem me atendeu foi uma moça vietnamita. Moça, maneira de dizer. Ela tinha algo entre os 40 e os 50 anos, talvez mais, é sabido que é muito difícil de precisar a idade das vietnamitas. Chamava-se Bao, que, em vietnamita, significa "tesouro". Se você, lúbrico leitor, já estiver imaginando malícias por conta da minha descrição, desimagine: ela não era atraente. Pelo menos não para mim.

No momento em que me acomodei na cadeira, ela tomou uma mecha de meus cabelos nas mãos e exclamou:

- Que cabelo bonito! Agradeci, contente. Ela me perguntou de onde eu vinha. Respondi. Ela acrescentou:

- Não me surpreende. Os brasileiros têm cabelos muito bonitos, são pessoas muito bonitas.

Agradeci de novo.

Sei que ela não estava dizendo só por dizer. Nós, brasileiros, somos mais "faceiros", como diria a minha avó, no que concerne à beleza física. Os americanos raiz, que vivem nas cidades do interior, são capazes de sair à rua de pijama e pantufas.

Bao me levou a outra sala, a fim de lavar meus cabelos antes do corte. Enquanto fazia isso, repetia:

- Que cabelo bonito! Que bonito!

- Obrigado, obrigado.

Depois, quando começou a cortar, ela teceu várias considerações sobre a beleza prateada dos meus cabelos. Eu já nem agradecia mais. Finalmente, acrescentou:

- Você é bonito como os seus cabelos. Você parece um ator.

Ergui uma sobrancelha.

- Que ator? - perguntei, temendo que ela respondesse Woody Allen.

- Aquele do filme Doutor Jivago.

Entesei na cadeira. Exclamei:

- Omar Sharif! - Esse!

Cara, quer dizer que sou parecido com o Omar Sharif? Fiquei feliz. Você viu Doutor Jivago, cinéfilo leitor? É um clássico. Foi baseado em um romance de Boris Pasternak, poeta russo que era o preferido de Stalin. O ditador gostava tanto de Pasternak, que ordenou aos seus esbirros:

- Não toquem nesse anjo!

O filme, belíssimo, se ambienta nos primeiros tempos da revolução russa. Omar Sharif contracena com uma linda e meiga Julie Christie e a música, mesmo que você não tenha assistido ao filme, você já ouviu: é o Tema de Lara. É assim, você vai se lembrar: "Tan-tan tantan! Tantantantan? Tantan!".

Mas o mais importante é que ele, o Doutor Jivago-Omar Sharif, é um galã. Um rosto másculo, entende? Viril. Omar Sharif era egípcio, mais moreno do que eu, mas, bem, acredito que Bao se referia aos traços fortes do seu semblante. Certamente. Traços fortes. Gostei.

Despedi-me efusivamente de Bao, depois que ela terminou o serviço, e saí de peito estufado pelas ruas geladas do inverno no norte do mundo. Passei por uma vitrine, fitei meu reflexo no vidro e sorri. "Omar Sharif", disse para mim mesmo. E especulei: será que devia deixar o bigode crescer?

Foi assim, de moral elevada, que cheguei em casa. A Marcinha lia uma revista no sofá. Contei para ela que a moça do salão me achara parecido com o Omar Sharif. Já sabia que a Marcinha não faria a menor ideia de quem se tratava. Ela não conhece atores e atrizes e nunca viu Doutor Jivago. Mesmo assim, eu repetia:

- Omar Sharif! Omar Sharif! Sem tirar os olhos da revista, ela comentou, quase que casualmente:

- Ficou bom o corte do cabelo?

Fui ao banheiro. Olhei-me no espelho. Decidi: vou deixar o bigode crescer. Voltei marchando para a sala. A Marcinha ainda lia a revista. Parei na frente dela. Ergui o queixo. Indaguei:

- Fala a verdade! Com que ator eu sou parecido? Hein? Hein?

E ela, sem parar de folhear a revista: - Com o Omar Sharif. É claro.

Respirei fundo. Deixei os ombros caírem. Sarcasmo. Se tem algo que odeio é o sarcasmo.

DAVID COIMBRA

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