quarta-feira, 18 de dezembro de 2019


18 DE DEZEMBRO DE 2019
PEDRO GONZAGA


Outra vez o latim


No início do século fui professor de latim, numa das poucas escolas que ainda mantinham a língua-mãe na grade curricular. Das tantas coisas que não entenderei neste país, está a escolha por um ensino de generalizações mendazes (de mendax, mentiroso), feito de rótulos ocos como Comunicação e Expressão e agora Linguagens. Se português, latim, espanhol e inglês fossem ensinados sem concessões, em todas as escolas brasileiras, por 10 anos, haveria uma revolução nos números do Pisa ou outros órgãos avaliadores.

Depois de décadas de eufemismos, práticas de afrouxamento das cobranças, associadas, claro, à miséria econômica e material em que vivem boa parte dos professores e alunos, não houve quaisquer mudanças significativas em nossa deplorável situação. E nem haverá.

Vem do tempo, no entanto, a praga maior do utilitarismo, esta crença de que o fiel da balança deva ser a aplicação imediata dos conhecimentos. Assim, língua, leitura, artes e humanidades têm cargas reduzidas e, onde ainda existem, se parecem com um programa de auditório, em que grandes temas são tratados como conversa de boteco.

Naquelas antigas aulas, eu gostava de apresentar uma lista de termos latinos, ao final de cada encontro, elementos que ajudassem os discípulos (de discere, aprender) na etimologia de nossas palavras, versão modesta daquilo que me ensinara o professor Dacanal, ou fizera o grande Paulo Rónai no clássico Não Perca o seu Latim. Gosto de acreditar que os alunos aproveitaram alguma coisa daquilo em suas vidas futuras, por mais inútil que lhes possa ter parecido então.

Saber, por exemplo, que solatium é conforto, de onde vêm desolação e consolação, e que nada tem a ver com a ausência de sol ou a presença dele, como certa vez ouvi. Nos dias otimistas, chego a cogitar, inclusive, as discussões que travaram sobre algum filme ou canção e que foram encerradas com um De gustibus non est disputandum, porque já para os antigos gosto não se discutia.

E será mesmo inútil sabermos que a presença do nosso cedilha está ligada à terminação "tio" no radical da palavra latina? Exceptio gera exceção, electio, eleição, o que não ocorre em ascensio, que nos deu ascensão, ou missio, missão. E nem mencionarei os ganhos de raciocínio para línguas próximas e até distantes do português.

Poder de síntese, noções sólidas de grafia e sintaxe, riqueza cultural. Essas inutilidades.

PEDRO GONZAGA

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