terça-feira, 15 de outubro de 2019


15 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR

Um desembargador

Eu sempre admirei quem não tem vergonha de si e peita o medo. Colega da escola do meu irmão Rodrigo, dois anos mais velho do que eu, chegava na aula de tênis sem cadarço e era zoado pela turma.

Só no começo foi esculhambado, porque ele fez os outros engolirem o desaforo. Não correspondia a uma tendência da moda na década de 1980, porém à pura necessidade. Ele calçava 37 e usava um tênis 35. Era o que podia ter, recebido de doação. A saída criativa consistia em tirar os cadarços para o pé caber na sola.

O tênis parecia uma pantufa branca, explodindo. Não havia como se soltar, tampouco entendia como ele encontrava um jeito de enfiar os dedos por dentro do couro. Operava uma mágica da persuasão a cada amanhecer.

Vivia com bolhas e vergões pelo emprego indevido. Dava para ver na hora dos exames médicos. Mas não reclamava do desconforto, aceitava os grilhões do destino.

Estudávamos em escola pública, poucos desfrutavam de calçados bons e pouquíssimos ostentavam produtos de marca. Pelos pés, reconhecíamos as dificuldades familiares.

Eu testemunhei o bullying fracassado. Todos no recreio começaram a caçar o tênis apertado para pisar e brincar com a extravagância da penúria, a gritar e tirar casquinha da irreverência da pobreza.

Ele não se intimidou com o riso das garotas por perto e desagregou a roda em torno dele com as palavras mais honestas ouvidas no meu Ensino Fundamental:

- Claro que sou pobre, alguém ainda duvida? Não é nenhuma novidade, não tenho tênis mesmo. Por que vocês acham que estou na escola? Para estudar e ser alguém na vida.

Seu desabafo desconcertou a algazarra, desnutriu a raiva, emagreceu as caretas. Ninguém mais o importunou dali por diante. Desferiu um rasgo de profecia adulta no coração imprevisível das crianças. Quem sofria também de adversidades materiais sentiu empatia pela situação e o poupou das investidas e das piadas.

Foi o primeiro homem que eu vi fazer chover com a sinceridade. Sua saliva deu um banho de realidade nos estudantes.

Eu me lembrei dessa cena não por acaso. Estava realizando uma palestra para o Tribunal de Justiça e quem eu revejo?

Ele mesmo, de terno escuro, gravata e olhar confiante. Um desembargador.

Demorei a reconhecê-lo. Na verdade, nosso encontro se desenrolou ao rés do chão.

No elevador, observei um senhor de sapatos desamarrados, e chamei sua atenção:

- Cuidado para não cair!

Ele riu e gracejou: - Hoje eu tenho cadarços, fique tranquilo, não caio mais.

Para não perder o espírito resiliente entre nós, completei: - Por precaução, continue estudando.

CARPINEJAR

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