sábado, 26 de outubro de 2019



26 DE OUTUBRO DE 2019

ARTIGO

UM MOMENTO CONSTITUINTE NO CHILE?

Tobalaba chama-se a rua por onde caminhávamos dia desses. Começo parafraseando Gabeira, que, em 1973, caminhava pela Rua Irarrazabal quando pela primeira vez viu um caminhão cheio de cadáveres. A situação de Gabeira, em busca de asilo em uma embaixada, era mais dramática. Eu sou apenas um turista em Santiago que deparou com gás lacrimogêneo. Achei a cena curiosa. Enquanto manifestantes e carabineros confrontavam-se, pessoas em geral seguiam transitando normalmente. Eu não podia imaginar que estava presenciando o início de uma convulsão social comparável apenas àqueles dias em que Gabeira caminhava pela Irarrazabal.

De início, é inevitável a comparação com o Brasil de 2013. Ambos os movimentos não têm comandos políticos organizados e foram deflagrados por aumentos no transporte. Mas as semelhanças param aí.

O movimento brasileiro acabou instrumentalizado por interesses conservadores. A mobilização chilena, por sua vez, parece essencialmente antineoliberal. O Chile, tão aclamado por economistas brasileiros formados em Chicago, não tem sistema público de saúde. Muitos aposentados recebem menos de um salário mínimo. Serviços como água, luz e transporte são caros. É contra isso que as ruas se insurgem. Sugere-se um "novo pacto social", incompatível com o modelo construí- do pelos economistas de Pinochet, também formados em Chicago.

Bruce Ackerman, ao analisar a história dos EUA, sustenta que o país viveu um momento constituinte não apenas na Convenção da Filadélfia, que resultou na Constituição, mas também na Guerra Civil e no New Deal. Embora a Constituição tenha continuado em vigência, a profundidade das alterações promovidas por tais processos os qualifica como momentos constituintes.

No fim de seu governo, em 2018, Bachelet propôs uma nova Constituição. A proposta não teve sequência, e, por ora, não se identifica nas ruas um clamor explícito nesse sentido. Não é difícil constatar, porém, que o modelo neoliberal - que tem amparo na Constituição de Pinochet e no governo de Piñera - está sendo desafiado. O novo pacto social exigido pelas ruas supõe a suplantação desse modelo.

Não é possível prever o desfecho disso tudo. Mas é certo que o país não será mais o mesmo. Ackerman permite-nos afirmar, portanto, que, sim, o Chile vive um momento constituinte. A soberania popular exige um novo pacto. E nesse novo pacto já não há espaço para economistas formados em Chicago.

Procurador da República e especialista em Direito Constitucional jorgemauriciopk@gmail.com
JORGE MAURICIO KLANOVICZ

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