sexta-feira, 23 de novembro de 2018


23 DE NOVEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

O anfitrião traído

O Brasil é um dos países mais racistas do mundo? Não. Não é.

Alguém pode dizer que não devo nem tenho como avaliar isso, já que sou branco, de ascendência europeia, não africana. Mas tenho e devo, sim. Tenho porque, se você é dotado de alguma imaginação e empatia, pode compreender como os outros se sentem. Devo porque tudo o que interessa à raça humana me interessa.

É evidente que, para a vítima da discriminação, o pior tipo de racismo é aquele que ela vivencia, seja onde for. Então, para o negro brasileiro, o pior racismo é o do Brasil. Para o americano, o dos Estados Unidos. Mas tento generalizar, não particularizar.

Não digo que no Brasil não exista racismo. Seria uma bobagem, racismo existe em todo lugar. Mas as relações no Brasil são mais fluidas. Sei que isso faz parte de um estereótipo, que é quase uma caricatura.

Só que é verdade.

Outro dia, estava em um restaurante brasileiro aqui da região, o Oliveira?s. Na mesa ao lado, espalhavam-se umas 12 pessoas, todas obviamente brasileiras. De repente, começa algo que é quase impossível de acontecer entre americanos: um dos homens daquela mesa começou a puxar conversa comigo. Era um tipo simpático, alegre, meio gordinho. Chamava-se Vinicius e era negro. Negro, não: mulato.

A propósito, devo fazer um necessário e breve interregno: há quem hoje critique essa palavra, mulato, para definir o mestiço de negro com branco, alegando que mulato vem de mula, animal híbrido de cavalo com jumenta. É uma crítica boba. Alguns historiadores contestam que mulato venha mesmo de mula, mas, ainda que venha, trata-se de erro e injustiça recuar à infância de uma palavra para avaliar o seu caráter.

Por exemplo: anfitrião parece uma palavra boa, não é? Claro que sim: você fala anfitrião e pensa em alguém que o recebe com hospitalidade em sua casa. Acontece que o anfitrião que deu origem à série era um general grego chamado? bem, Anfitrião. Ele havia se casado com Alcmena, uma mulher belíssima. Porém, antes da lua de mel, Anfitrião foi mandado para a guerra. Lá foi ele, matar outras pessoas, enquanto Alcmena ficou esperando pela consumação do amor.

Quem não esperou foi Zeus, o pai dos deuses, que fez lá um encantamento e ficou igualzinho a Anfitrião. Preparou-se para descer do Olimpo, mas, antes, chamou outros dois deuses e deu-lhes ordens: disse para Apolo não deixar o sol nascer por três dias e para Hermes se transformar em Sósia, o escravo de Alcmena. A ideia era deixar Hermes-Sósia vigiando, enquanto ele se repimpava com a formosa mortal por três noites. E foi o que aconteceu. Alcmena até desconfiou: o corpo e a voz eram de Anfitrião, mas havia algo estranho no comportamento dele. No entanto, como ela queria muito estrear nas lides do amor, entregou-se a ele sem restrições. E, durante todo aquele tempo, 72 horas completas, Zeus se regalou com a mais linda das humanas.

Depois que ele se foi, saciado e feliz, o verdadeiro Anfitrião chegou. Achava que Alcmena iria atirar-se em seus braços, mas a recepção dela foi tépida, como se o tivesse visto no dia anterior. Aí foi Anfitrião quem ficou desconfiado e, depois de algumas investigações, descobriu a verdade: havia sido corneado por um deus. Furioso, decidiu queimar Alcmena viva, mas Zeus mandou uma chuva caudalosa e apagou a fogueira. Foi o que bastou para Anfitrião compreender que estava se comportando como um imbecil, perdoar a mulher e, enfim, ter uma noite de loucuras e prazeres inenarráveis com ela. Do relacionamento de Alcmena com Zeus nasceu ninguém menos do que Hércules, meio humano, meio divino. Além disso, Sósia e Anfitrião se transformaram em substantivos.

Se você fosse malicioso, diria que anfitrião, na verdade, vem de corno manso e não aceitaria ser chamado dessa forma quando recebe alguém em sua casa. Conclusão: nada de ter preconceito contra a origem das palavras.

Encerrado o necessário e nem tão breve interregno, voltemos ao meu vizinho de mesa, o mulato Vinicius. Ele me disse algo interessante, entre caipirinhas geladas e porções generosas de feijão tropeiro. Disse que os americanos não o discriminam nem parecem ter preconceitos, mas que é impossível se misturar com eles. Isso me pareceu importante, esse termo, misturar-se. Direi o porquê. Mas amanhã.

DAVID COIMBRA

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