29 DE FEVEREIRO DE 2024
O PRAZER DAS PALAVRAS
De volta às aulas
Volta fevereiro, e com ele voltam as aulas na maioria dos estados deste imenso Brasil. Como de costume, também, começam a chegar as dúvidas escolares, enviadas por pais e mães aflitos com o conteúdo que está sendo servido a seus filhos. Fico espantado com a desconfiança generalizada que esses pais têm com relação ao conhecimento dos professores, os quais, a julgar pelas consultas que recebi, demonstram conhecer muito bem o seu ofício, como o prezado leitor poderá avaliar na relação abaixo.
1) ALTO OU AUTO DE NATAL - "Na lista de livros que deram para meu filho este ano consta Auto de Natal, assim, com U, como automóvel. Fui conferir na internet e, como eu imaginava, achei Alto de Natal em várias páginas conceituadas do Google. O problema é que também tem muitas outras com Auto, mesmo, como a escola escreveu. Afinal, é Alto ou Auto de Natal? Obrigada pela atenção."
Resposta - Senhora mãe, a escola do teu filho está correta. Os autos eram pecinhas do teatro de origem popular, geralmente religiosa, que eram encenadas, na Idade Média, nas escadarias da igreja. Em Portugal, Gil Vicente escreveu vários autos famosos, como o Auto da Barca do Inferno e o Auto da Índia. No teu caso, é claro que é Auto de Natal. Lembro-te o Auto da Compadecida, do Ariano Suassuna, que até minissérie já virou. A confusão entre as duas palavras é favorecida pelo som, já que a letra L depois da vogal é lida normalmente como /u/. Basta ver o erro corriqueiro de escrever piano de *calda, quando deveria ser cauda.
2) PLURAL DE SOL? FEMININO DE PAPA? - "Minha filha começou a estudar o gênero e o número dos substantivos e o professor deu uma lista de exemplos que serão tomados no teste da primeira semana de março. Fiquei preocupado com duas coisas: ele dá guarda-sóis como o plural de guarda-sol e papisa como o feminino de papa. Mas plural de Sol é possível? Não é só um? E desde quando papa tem feminino, se a Igreja Católica não aceita mulheres em seus quadros?".
Resposta - Senhor pai, o professor do teu filho está correto. O Sol (nota a maiúscula!), nosso astro- rei, é realmente um só, mas o sol (com minúscula), com seus vários significados, flexiona normalmente no plural. O Sol é o centro do sistema planetário a que a Terra pertence, mas há bilhões de outros sóis, a maior parte deles maiores do que o nosso...
Afirmar que papa não tem feminino porque jamais uma mulher assumiu o trono de São Pedro é o mesmo erro de raciocínio: temos de distinguir o universo real, infinito, do universo da linguagem, que é mais extenso ainda, maior que o infinito, pois ela nos permite falar no que existe e no que nunca existiu. Precisamos do feminino papisa, quando mais não seja, para poder dizer "Nunca houve uma papisa até hoje", ou "A história da papisa Joana é uma lenda sem fundamento", ou "Já tivemos vários papas, mas nenhuma papisa".
3) FEMININO DE GAFANHOTO? - "A professora da minha filha pequena disse em aula que o feminino de pato é pata e o de sapo é sapa, mas que só tem formiga e não tem formigo, só tem gafanhoto e não tem gafanhota. Eu também fiquei curiosa e fui pesquisar. Todo o mundo afirma o mesmo, mas ninguém explica o porquê. Existe alguma razão gramatical que eu não estou enxergando? Obrigada."
Resposta - Senhora mãe, a gramática não é responsável por isso. Ocorre que uma língua (qualquer uma) economiza ao máximo os seus recursos e só vai fazer distinções de gênero que sejam importantes para os seus falantes - em outras palavras, ela só vai marcar os dois sexos biológicos quando isso tiver alguma importância para a comunidade. Para a criação de animais domésticos e de abate, por exemplo, é fundamental distinguir entre machos e fêmeas (o boi, a vaca, o touro; a ovelha e o carneiro; o galo e a galinha, e por aí vai a valsa).
No entanto (ao menos por enquanto) não ganhamos nada em marcar esta distinção no caso da formiga, da girafa, do gafanhoto ou da onça. Se for realmente necessário distinguir, recorremos, então, ao acréscimo de "macho" ou "fêmea": a girafa macho, a fêmea do crocodilo, o macho da saracura, evitando a criação de formas de raro uso como *girafo, a *crocodila e o *saracuro.
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