17 DE FEVEREIRO DE 2024
BRUNA LOMBARDI
O AVESSO DO AMOR
Às vezes o coração empedra. Endurece de um jeito como se uma argamassa de dor e raiva misturadas virasse cimento. Um cimento que secou cheio de marcas, de quem não prestou atenção e pisou em cima, riscou, fez um estrago. Empedrou e agora ninguém mais repara nisso.
Amor machuca, a gente sabe, mas sabe de um jeito errado porque o que machuca é o avesso do amor. É o desamor, a falta, a ausência dele. O lugar onde ele não existe. Em cada espaço que o amor não habita, outras coisas crescem. O que o amor não ocupa logo é invadido por um descontrole de sentimentos distorcidos, uma espécie de ferro em brasa que fere devagar e parece que nunca cicatriza.
Até que um dia chega uma dessas chuvas que a gente gosta de tomar porque lavam a alma, limpam o espírito e molham o coração de um jeito que umedece. E dessa umidade começa a brotar coisa, musgo, mato, flor.
Já não é pedra mais, nem cimento marcado, é a natureza que brota inesperada de um lugar que parecia impossível de tão árido. Um sopro de vida aparece e se enfeita. A palpitação da expectativa. Alguma coisa se vislumbra, um fio frágil de esperança.
A beleza da vida é que todo dia ela recomeça e surpreende. Basta uma brecha, uma fenda, uma fresta e de repente a beleza entra. Quem andava desencantado olha para o olho de alguém e percebe que nem tudo está perdido. E aquilo que se perdeu aos poucos vai sendo esquecido. Encontramos novas trilhas, caminhos que inventamos, possibilidades.
Porque a vida é possível, apesar de tudo. Pode parecer difícil e improvável quando uma porta se fecha, quando te arrancam o chão. Quando durante tanto tempo tecemos sentimentos duros e nos cobrimos com eles para esconder um coração despedaçado. Usamos um escudo de defesas para que nunca mais nossa vulnerabilidade seja atingida.
Desmanchar isso não é simples e nunca parece seguro. Temos medo. Precisamos nos proteger. A gente sabe que nosso coração não vai resistir se for machucado de novo. Escolhemos o desamor como se fosse um lugar fora de perigo, como se nos deixasse mais fortes.
Mas é uma contradição a gente tentar usar o desamor como um abrigo para nos proteger, se foi justamente o desamor que nos feriu. Sem perceber, estamos nos entregando ao nosso pior inimigo. Estamos nos tornando aquilo que combatemos.
Não podemos deixar que a vida nos transforme naquilo que não somos. Viemos para trazer essa força amorosa para a vida e não para ter medo dela.
Precisamos de muita luz para vencer a escuridão do mundo. Quando um coração magoado se fecha, é uma luz que se apaga. Uma energia que deixa de brilhar, e todo o campo se torna mais sombrio. Se a gente se machucar ou machucar alguém, sofrer ou causar sofrimento, essa é a matéria de viver. É inevitável. Toda dor é um rito de passagem. A gente se recupera, e as marcas que ficam são nossa história.
Viemos distribuir abraços e acolhimentos, lágrimas e risadas, viemos experimentar, vivenciar, entrar de peito aberto nas emoções. Viemos pra olhar um arrebatador fim de tarde e acreditar na força do Universo. Ocupar tudo com amor para que o avesso dele não se instale. Vencer o desamor é um ato de resistência.
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