terça-feira, 3 de setembro de 2019



03 DE SETEMBRO DE 2019
CARPINEJAR

O elo perdido

O avental da barbearia é o meu avental da invisibilidade. Quando vou me barbear, esqueço que existo, dispenso os problemas, mergulho no silêncio doce de ser cuidado.

A lâmina que tira a espuma também leva as preocupações junto.

Não tem sensação igual à de sentar naquela cadeira de couro, como se fosse um banco de um antigo Maverick, e fechar os olhos com a toalha quente no rosto. Dirijo novamente a minha memória, assumo o comando do passado, descobrindo desejos que nem mais lembrava que eram meus. Uma hipnose não teria tanto sucesso.

Confio no barbeiro como um amigo mais leal: que ele não me cortará, que não me machucará, que sairei dali com a pele perfumosa e ardendo da loção - queimação boa de um trabalho perfeito, com os poros dilatados e abertos ao vento.

Dar a face para alguém já me devolve a crença na humanidade, ainda que provisória, ainda que por um dia.

Fazer a barba é a sauna do homem. Ele emagrece a alma.

O pincel redesenha a minha fisionomia, a espuma estoura aos poucos, devagar, bolhas de sabão da infância na epiderme adulta.

Desde criança, frequento salões, levado pelo meu pai. Quanto mais simples o espaço, maior o despojamento.

O pano branco cobrindo todo o meu corpo, deixando apenas a cabeça de fora, é um feitiço. Sou um voluntário da plateia, chamado ao palco pelo mágico, que me faz desaparecer levantando o tecido. Chego a escutar os aplausos do público em meu coração.

Não precisamos de muito para alcançar o contentamento. Às vezes, só precisamos não precisar de nada. Inexistir sentindo o cheiro do café sendo passado, ouvindo os pássaros ao fundo, os cumprimentos de quem abre a porta. Como se o mundo estivesse parado, suspenso, e nós, entregues a sorver um momento de cada vez.

A ânsia de ser feliz só estraga a felicidade. Estamos sempre indo para algum lugar, e jamais chegando, e jamais satisfeitos.

Quando ajeito os pelos do meu pescoço, remapeando o traçado de meu queixo, abandono, por 30 minutos, a correria louca da carreira, os prazos urgentes, a neurose de completar os trabalhos antes da advertência do chefe. Não há medo de me ferir. Tenho, de volta, fé na vida.

CARPINEJAR

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