27 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA
A surpresa de Verissimo
O Verissimo, ontem, completou 83 anos de idade. Em comemoração, Zero Hora fez com ele uma breve entrevista e republicou sua primeiríssima crônica, que saiu na edição de 19 de abril de 1969.
Há algo curioso nessa coluna inaugural. É que o Verissimo começa se apresentando: "Pues, vamos nós. Luis com 'esse' Fernando dos Verissimo de Portugal e Cruz Alta". Ou seja: já na abertura, ele ensina como se escreve o seu nome - "Luis com 'esse'". Mas, no alto da página, o jornal grafa Luiz, com zê.
O que significa isso, além da desatenção do revisor? Provavelmente nada. Mas, na entrevista que ele concedeu, está engastado um trecho que me interessou em especial. É quando Verissimo diz que se surpreendeu com a volta dos militares ao poder. Porque, sim, a eleição de Bolsonaro representa a volta dos militares ao poder, ainda que tenha sido através do voto.
Existe, de fato, alguma razão para a surpresa. Afinal, havia 30 anos que os militares estavam recolhidos à caserna e parecia que eles não tinham interesse em voltar. Ao contrário, davam a impressão de estar fartos da política. No entanto, durante todo esse tempo, um sentimento ancestral permaneceu em estado de latência na alma da população. Trata-se de uma ideia surgida nas lonjuras do século 19: a de que os militares são o único remédio contra a corrupção dos políticos.
O parto da República brasileira foi feito por meio do fórceps de ditaduras militares. Deodoro e Floriano, os dois primeiros presidentes, eram generais avessos às sutilezas democráticas, tanto que, na época, os políticos civis eram apelidados, com evidente desprezo, de "casacas". Floriano era tão duro, tão autoritário, que o chamavam de "Marechal de Ferro". Isso, ao invés de repulsa, causava admiração, a ponto de os apoiadores de Floriano, os "florianistas", pedirem para que ele continuasse como ditador, depois de encerrado o seu mandato.
Floriano não continuou no cargo. Os civis assumiram, mas a insatisfação com a forma como o país era governado continuou. E foi aumentando a cada novo presidente que entrava no Palácio do Catete.
Então, chegamos aos episódios que estou narrando desde o começo da semana: as revoltas do tenentismo. Houve a marcha insana dos 18 do Forte, houve a Revolução Esquecida e, como consequência, houve a Coluna Prestes. Todos esses movimentos são liderados pelos tenentes descontentes (rimou!) com um regime que, na prática, existia para atender às demandas da oligarquia do café.
Foram os tenentes os principais agentes da dissolvência da Velha República, foram eles que carregaram Getúlio Vargas ao poder, na Revolução de 30. Mais: os tenentes insistiram para que Vargas assumisse em definitivo como ditador, durante o governo provisório. Vargas, ladino que era, não dizia que sim nem que não - dissimulação era a sua especialidade. Claro que ele pretendia instaurar uma ditadura, o regime da moda naquele tempo, só que sem os tenentes para dar palpite, o que acabou conseguindo mais tarde, em 1937.
Todos os golpes ou tentativas de golpe no Brasil, até 1964, todos, todos, até a Intentona Comunista, têm a participação dos tenentes. Aí eles não são mais tenentes, óbvio. São generais. Pouco importa: o espírito do tenentismo está lá, torcendo o nariz para a manha dos casacas, ansiando pela rígida integridade militar.
Bolsonaro não tem a sofisticação, o currículo, nem o preparo intelectual dos tenentes, mas ele foi o único militar a declarar suas ambições políticas depois da redemocratização. Fosse há 25 anos, fosse há 15, fosse há 10, seu discurso grosseiro seria considerado piada. Ninguém o levaria a sério. Mas as crises do Executivo e do Legislativo fizeram com que as pessoas enveredassem pela mesma via do florianismo e do tenentismo: de olhar o Exército como um bálsamo moralizante, como a instituição de salvação nacional. Verissimo tem razão de se surpreender, porque se trata de uma solução antiga e que não deu certo antes. Mas, bem, desde a infância o Brasil aprendeu a ser assim.
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