23 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA
O nosso presidente negro
Já houve campo de concentração no Brasil. Tivemos, nós também, o nosso Auschwitz. Chamava-se Clevelândia, em bizarra homenagem ao presidente americano Grover Cleveland. Ficava no meio da selva inóspita, nas lonjuras do Oiapoque, lá onde o Brasil começa. Ou termina, dependendo do ponto de vista. A maioria dos homens que foram presos nesse lugar terrível, apelidado de "Inferno Verde", morreu ante os maus-tratos, as torturas, as doenças.
Nem faz tanto tempo assim que essa infâmia aconteceu, foi nos anos 20. Conto a história para mostrar que o que se deu naquela época tem a ver com o que hoje se dá.
Quem concebeu esse campo de concentração foi o presidente Arthur Bernardes, que virou nome de muita rua e avenida pelo Brasil, mas que, na verdade, foi um homem cruel, autoritário e até sanguinário. Se você der uma googlada e pesquisar as fotos de Bernardes, verá um tipo de rosto fino, cabelo puxado severamente para trás e jamais sorridente. Sei porque ele não sorria: porque estava sempre atormentado por seus medos e ressentimentos.
Bernardes foi escolhido presidente em um daqueles processos fraudulentos das eleições na Velha República. Na verdade, se formos considerar eleições de massa mesmo, com real participação popular, o Brasil só foi ter uma em 1945. Repare como nossa democracia é renga: o maior período de normalidade política da nossa história, com eleições limpas e sem que um presidente deixasse o cargo por impeachment, golpe, renúncia ou suicídio, foram os 20 anos transcorridos entre Fernando Henrique e o primeiro mandato de Dilma. E, no meio disso, ainda houve uma mudança de regras, com a permissão de reeleição em 1996.
Aliás, sou contra a reeleição.
Mas isso não interessa agora, interessa é recuar até 1922, quando Arthur Bernardes foi "eleito" presidente. O candidato de oposição era Nilo Peçanha, que, de fato, era o oposto de Bernardes. Tenho a maior simpatia por Nilo Peçanha, que havia sido presidente 12 anos antes. Ninguém fala, mas sabe o que ele era?
Era negro.
Garanto que, quando sua professora ensinou sobre o governo Nilo Peçanha não contou que ele era negro. Mas era. Ou, se você preferir, mulato. A propósito, não vá atrás dessa história de que "mulato" é pejorativo por vir de "mula". Etimologistas sérios já esclareceram que mulato vem do árabe "mullawad", que é o filho de um muçulmano com um cônjuge não muçulmano.
Nilo Peçanha, portanto, era mestiço, pardo, mulato. Assumiu a Presidência quando Afonso Pena morreu, em 1909, um mês antes da realização do primeiro Gre-Nal, e governou por menos de um ano e meio. Nesse curto período, porém, incentivou a abertura de escolas técnicas, que foram importantíssimas para que os pobres tivessem acesso à educação, e criou o famoso Serviço de Proteção ao Índio, comandado por um dos mais extraordinários personagens da história do Brasil, o marechal Cândido de Rondon. Esse homem, Rondon, foi um herói. Um verdadeiro herói. Ele?
Mas estou tergiversando. Queria falar de Arthur Bernardes, aquele sacripanta, e não paro de abrir abas na história. Deixe-me, então, acabar de falar de Nilo Peçanha. Sabe qual foi o lema que Nilo Peçanha lançou em meio ao seu governo? Você não vai acreditar: "Paz e amor".
Que tal? Tivemos um presidente negro cem anos antes de Obama e de alma pacifista 60 anos antes dos hippies. Uma espécie de Bob Dylan caboclo. Peninha, exijo agora um vídeo alentado sobre o bravo Nilo Peçanha! E outro sobre o biltre Bernardes. De quem continuarei falando amanhã.
DAVID COIMBRA
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