sábado, 14 de setembro de 2019



14 DE SETEMBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

O tempo e o pó

De onde surge o pó? Casa fechada, sem ninguém dentro, nada se moveu, de onde vem tanto pó? Voltamos de viagem e é poeira sobre as superfícies, novelinhos translúcidos crescendo nos cantos da casa. Seriam rastros de fantasmas? Seriam restos de uma festa de fadas domésticas que se aproveitaram da nossa ausência para um baile?

Não acredito nessas magias, creio que a origem é mais prosaica. Estou convencido de que o culpado é o tempo fazendo-se notar. Sendo invisível, come as beiradas de tudo para marcar presença. O pó é o suor do tempo em sua missão de desfazer o mundo. Seus dentes minúsculos não dão descanso à matéria. Sua língua áspera e seca enferruja, desbota, lasca, esfarela, tira o brilho e produz o pó. O tempo não é um relógio, o tempo é um hálito ácido, um nevoeiro invisível que a tudo envolve e corrói.

A Bíblia diz que viemos do pó e a ele voltaremos. Nada mais sábio. Mas não só nós. A gula do tempo não deixa nada de fora. Morde incansavelmente a tudo. Sua imaterialidade inveja as formas e as cores, por isso as lima.

Limpar a casa é uma tarefa infinita, pois o pó brota ao virarmos as costas. A sujeira poeirenta nos desgosta por remeter intuitivamente ao decaimento da matéria, ao caos. Nosso inconsciente sabe que poeira carrega algo de morte. Talvez limpar seja algo socialmente rebaixado por essa conexão, queremos evitar contágio.

Nos cenários de filmes de terror, o pó está sempre presente acompanhado da teia de aranha, sua companheira de apontar abandono, para criar a atmosfera sinistra e ressaltar a decadência. A poeira sinaliza que os monstros estão por perto. O pó é o símbolo da morte homeopática, cada dia um pouco. Os monstros, da morte rápida, pois agem de um só golpe. Nos filmes de terror, trabalham juntos.

Chronos, deus do tempo na cosmologia grega, é embaralhado a Cronos, o titã que engolia seus filhos. Normal, o tempo é aquele que tudo devora. Em algumas mitologias, o fim do mundo é precedido de um monstro que abocanha o Sol e a Lua, não raro é um lobo. Como os astros são nossos relógios naturais, por marcar os ciclos, no apocalipse faz sentido serem mastigados por um monstro. E outra vez estamos na esfera da boca, o tempo de fato tem dentes.

Capitão Gancho é continuamente perseguido por um crocodilo que, além da sua mão, engoliu um relógio. Peter Pan ainda não está na fase da vida em que se escuta medrosamente o tic-tac vindo da barriga do réptil, por isso o velho pirata o odeia.

Quando nos apaziguamos com a voracidade do tempo, percebemos que, ao contrário de Cronos, são os filhos que engolem os pais. Vamos ao pó para seguir vivendo em suas memórias. Assim como nós carregamos na lembrança os que já se foram. Sozinhos, não podemos nada. Juntos, aceitando ser o elo de uma cadeia maior, derrotamos o tempo e o pó.

MÁRIO CORSO

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