02 DE DEZEMBRO DE 2017
CLÁUDIA LAITANO
O FIM DO RECATO
O conflito final não será entre veganos e carnívoros, tatuados e sem-tinta, monogâmicos e poliamantes, mas entre recatados e o resto do mundo.
Manter amigos e conhecidos atualizados a respeito do programa da noite anterior, o cardápio do café da manhã e os planos para o próximo fim de semana tornou-se o novo "bom-dia". Ainda assim, sobrevivem entre nós aqueles que nunca fotografaram o próprio pé (a não ser por engano), só atualizam o status conjugal no cartório (por obrigação) e preferem se queixar da vida para o motorista do Uber a fazer revelações sobre a própria intimidade em uma rede social. Sim, eles ainda existem, mas estão se tornando cada vez mais raros.
Diferentes gerações dificilmente chegariam a um consenso a respeito do que é "íntimo demais" para ser compartilhado em uma rede social. A vida amorosa? O banheiro de casa? Uma doença terrível? Nos últimos anos, o conceito de intimidade foi sendo empurrado para um quartinho cada vez menor nos fundos da nossa vida privada. Para boa parte dos nativos digitais, não existe outra forma de viver a não ser trocando experiências e forjando uma identidade virtual ativa e supostamente genuína, transparente. Se deixar de compartilhar é quase como deixar de existir, palavras como "recato", "pudor" ou mesmo "privacidade" soam tão anacrônicas quanto "fax".
Na vida, como nas redes, agimos a maior parte do tempo por observação, assimilação e imitação. Adultos recém desembarcados nas redes sociais - colonizadas por pioneiros muito mais jovens - costumavam torcer o nariz para gente que fazia selfies na frente do espelho do banheiro, por exemplo. Com o tempo, esse novíssimo gênero fotográfico foi tornando-se lugar-comum e impôs-se como "mainstream" nesse ambiente.
Da mesma forma, as timelines foram se enchendo de experiências de compartilhamento tão ou mais inusitadas. A intimidade alheia passou a ser encarada com naturalidade e bom humor - e eventualmente até mesmo algum interesse. Passamos a viver como se morássemos em um enorme condomínio em que é impossível ignorar o que o vizinho comeu no almoço, a música que ouviu com os amigos e os barulhos que fez quando estava com a namorada. Já aqueles que preferem permanecer parte do dia com as janelas fechadas e as luzes apagadas são vistos como arrogantes, antissociais, esquisitões.
Na semana que passou, um jornalista que passou boa parte da carreira administrando a vida particular com discrição e sobriedade sucumbiu à urgência de compartilhar com milhões de seguidores uma declaração de amor, em tom lírico, para a nova namorada. Seja pela necessidade de rejuvenescer a própria imagem diante dos telespectadores, seja por ter assimilado a nova sensibilidade da época, William Bonner atravessou uma fronteira invisível. Com sua defecção, o pequeno exército dos recatados ficou ainda menor e mais fraco. O que talvez ninguém tenha reparado, já que os poucos remanescentes da categoria não se deram ao trabalho de fazer um post a respeito.
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