27 DE DEZEMBRO DE 2017
CLÓVIS MALTA
Era uma vez
Se pensarmos que um dia, não muito distante, quase colocamos abaixo o Mercado Público de Porto Alegre, vamos entender melhor por que chegamos a esta situação de calamidade urbana. O prédio majestoso, que é a síntese da cidade, já tinha sobrevivido a todo tipo de catástrofe, de enchentes a incêndios.
Conseguiu também resistir ao pedido de passagem dos carros, preservando a diversidade de seu público, as casas de artigos religiosos, o cheiro de peixe misturado ao de charque, de especiarias e de erva-mate, os locais percorridos por Lupicínio Rodrigues e até mesmo aquela inquietante cadeira na qual teria sentado Francisco Alves, pendurada na parede de um de seus bares boêmios.
O passado histórico fez do Mercado uma referência. A cidade à qual essa verdadeira fortaleza oferece de tudo é que não resistiu. Sumiu do mapa como boa parte da Rua Avaí depois da Primeira Perimetral.
Agora mesmo, vemos turistas de todo o Brasil e até do Exterior extasiados com os espetáculos de luzes de fim de ano em cidades serranas limpas e organizadas, para orgulho de seus moradores. Se Porto Alegre fosse escolher um local para as comemorações do Réveillon, como fazem todas as cidades com um mínimo de respeito aos seus moradores, escolheria o quê? As opções que não viraram tapume para sempre resumem-se hoje a um imenso matagal. Era uma vez uma cidade boa para se viver. Virou uma lenda para as futuras gerações.
Por onde quer que andemos pelas calçadas degradadas, ficamos com o temor de que o capim possa atingir logo a nossa altura. O asfalto esfarelou-se. O lixo esparrama-se pelo chão, e ali fica. As favelas de lonas pretas disputam os muros. Monumento vandalizado não passa mais por reparo - some, ou cai no esquecimento. As pichações sem controle contribuíram para a extinção do hábito de se renovar a pintura de prédios. A iluminação de rua faz pensar se os lampiões a gás do século 19 não seriam mais eficientes.
Tem quem não ligue e quem pense que sempre foi assim, que esse caos é igual em todas as metrópoles. Não foi, não é. Porto Alegre já teve ares de cidade europeia, mas não vivemos do passado. É hoje que precisamos aproveitá-la.
Quando alguém decidiu demolir o Mercado Público para construir uma avenida, Mario Quintana impôs-se com a lucidez da poesia em meio ao coro dos aficionados pelas escavadeiras. E onde vamos guardar os nossos fantasmas?, alertou. De novo, é possível que as saídas para preservar a "Cidade do meu andar", na definição do poeta, esteja não com os gestores públicos e políticos, mas com quem a ama de fato e com ela convive no cotidiano.
A capital dos gaúchos não tem mais um porto à sua altura. Não é mais alegre. Ao contrário do Mercado Público, deixou de acolher quem a admira, como fazemos com as visitas. Seu lema continua sendo Leal e Valerosa, fiel ao passado de bravura. Quando voltará, se é que vai, a ser o que diz seu nome?
CLÓVIS MALTA
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