domingo, 10 de dezembro de 2017


09 DE DEZEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

Quem tem amigos tem tudo

Uma das frases mais bonitas já escritas sobre a amizade é do homem que, há cinco séculos, praticamente inventou o estilo da crônica, o francês Michel de Montaigne. O grande amigo de Montaigne chamava-se Étienne de la Boétie. Ambos eram filósofos, ambos se interessavam pela vida. Mas Boétie morreu jovem, aos 32 anos, e Montaigne ficou inconsolável. Quando lhe perguntaram por que gostava tanto do amigo, Montaigne disse que só tinha uma maneira de responder:

"Porque era ele, porque era eu".

Meu amigo Carlão Fleck diz sempre que quem tem amigos tem tudo. Talvez tudo seja demais, talvez algo lhe falte, mas, certamente, quem tem amigos tem o mais importante.

O poeta Mario Quintana dizia que só os homens são realmente amigos uns dos outros. Ele escreveu um poema intitulado "Da amizade entre as mulheres":

"Dizem-se amigas, beijam-se...

Mas qual!

Haverá quem nisso creia?

Salvo se uma das duas, por sinal,

For muito velha, ou muito feia".

Exagero poético. Claro que as mulheres podem ser boas amigas umas das outras, não é?

Uma das mais emocionantes histórias de amizade que conheço é a que envolveu dois astronautas russos, o famoso Yuri Gagarin, primeiro homem a ver a Terra de fora da Terra e antecipar o Grêmio de Renato ao proclamar que "a Terra é azul", e o nem tão famoso, mas muitíssimo importante Vladimir Komarov.

Gagarin e Komarov trabalhavam juntos no programa espacial soviético. Eram os tempos da Guerra Fria. Americanos e russos disputavam não apenas o planeta, mas também o espaço. Quem vencesse a chamada "corrida espacial" seria visto pelos outros povos como o campeão tecnológico da humanidade. Por isso, o Partido Comunista exigia pressa dos cientistas - era preciso chegar à Lua antes dos ianques.

Um dos mais ambiciosos planos soviéticos era o de lançar duas naves e fazer com que os astronautas de uma passassem para a outra em pleno espaço. Seria uma façanha. Komarov deveria tripular uma delas, a Soyuz 1. Soyuz, em russo, significa "união" - os astronautas das duas Soyuz se uniriam em nome da União Soviética.

Komarov, porém, percebeu que sua Soyuz estava cheia de problemas e que não reunia condições de viajar. Alertou seus superiores, mas eles responderam que o Partido esperava que o calendário do programa fosse mantido. Outros cientistas protestaram, afirmando que havia mais de 200 defeitos na nave, e acabaram demitidos ou enviados para a Sibéria. Komarov, por fim, enviou uma carta ao próprio secretário-geral do PC, o sobrancelhudo Leonid Brejnev. Não obteve resposta. Continuou reclamando, e então lhe disseram que poderia desistir do voo, desde que seu amigo Yuri Gagarin o substituísse. Só então Komarov recuou. Não podia fazer aquilo com seu amigo.

No dia do lançamento da Soyuz, Gagarin descobriu o que estava ocorrendo, tocou para a estação e apresentou-se para tripular a nave. Tarde demais. Komarov havia decolado. O desfecho da história é terrível: singrando no vazio do espaço, sabendo que não voltaria vivo à Terra, Komarov chorava de raiva e insultava seus superiores. Seus companheiros em terra, desesperados, choravam com ele.

A nave começou a apresentar falhas sucessivas. Os chefes do Partido, então, compreenderam que o projeto fracassaria, e ordenaram que a Soyuz retornasse. Mas o paraquedas não abriu, a nave despencou na atmosfera terrestre e o corpo de Komarov derreteu como se fosse uma boneca de plástico. Sobrou inteiro apenas um pedaço do osso do calcanhar. Mesmo assim, Komarov foi enterrado com o caixão aberto. Seus restos mortais não passavam de uma massa distorcida e enegrecida, de cerca de um metro de comprimento. Komarov morreu de forma horrível a fim de salvar seu melhor amigo.

Acho que o Carlão está certo. Quem tem amigos tem tudo.

DAVID COIMBRA

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