13 DE DEZEMBRO DE 2017
CLÓVIS MALTA
Nossa valentia
Há algo de novo na correnteza da vida que se intensifica nesta época do ano. Por toda parte, vemos funcionários públicos penando. Olham vitrines transbordando ofertas e consultam catálogos de presentes, mas o 13º salário é uma incógnita, o valor do mês custa a sair. E, então, sonham, pois é o que lhes resta.
Temos hoje um verdadeiro exército de Naziazenos, formado por servidores de bolsos vazios, acuados por dívidas. Quem leu Os Ratos conhece a dor do barnabé a quem Dyonélio Machado batizou com esse estranho nome. Naziazeno Barbosa se vê sob a ameaça de ter o fornecimento de leite cortado no dia seguinte por falta de pagamento. No livro, como na vida, custamos a entender como é que alguém procura a segurança do poder público e esbarra na incerteza.
Sim, no romance, o trabalhador está com o pagamento de empréstimos e as tarefas da repartição em atraso. Tem falta de sorte no jogo, dificuldade de encarar os credores e nenhum ânimo para batalhar por renda extra. A Porto Alegre de seu calvário é do tempo em que o leiteiro fazia as entregas de carroça, de porta em porta. Ainda assim, aquele cotidiano tem muito a ver com o dos funcionários de hoje.
Se pudéssemos ler seus pensamentos, como na obra do mestre do regionalismo, talvez percebêssemos até mesmo o temor de um ataque de roedores. Quando falta o salário, a própria integridade física e a dignidade ficam ameaçadas. Tem algo mais degradante do que correr atrás de empréstimo consignado? Pois é o que sobra para quem não é do Legislativo nem do Judiciário. Quando o limite estoura, a fé migra para as loterias. O leite precisa jorrar na panela na manhã seguinte, para que a luta recomece.
Por que passamos tanto tempo exaltando nossa bravura, mas assistimos inertes ao setor público tombar em cacos? Por que deixamos que o entulho soterrasse o funcionalismo e quem depende de seus serviços?
Entre os nossos mais instigantes dilemas, está o lançado em Juca Guerra, um dos Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto - outro de nossos clássicos no qual a realidade surgiu primeiro como ficção. Qual o mais valente, dispara o autor: o boteiro que salva afogado no mar e é condecorado por isso, ou o peão que livra alguém das patas de um touro, sacrificando seu próprio cavalo, sem obter qualquer reconhecimento?
Quem acha que é o "da beira da praia" não admite sequer ouvir as alegações de quem defende ser outro, o "da beira... da morte certa". E quem tem certeza de que é o peão despreza qualquer possibilidade de ser o barqueiro.
Preocupados com a nossa bravura, esquecemos do resto. De conferir as contas públicas no caderninho, na ponta do lápis. Dos próprios servidores, esses sofridos Naziazenos.
Lamentável que o nosso destemor se preste hoje apenas para destruir o argumento do outro. Se possível, o próprio outro. Nunca para avanços coletivos. É como se esse rio que é a vida fosse tristemente imutável, como as nossas convicções, como nós mesmos.
CLÓVIS MALTA
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