Ao captar o ódio frio de tirano tropical, García Márquez explica o presente
Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress | ||
De tão repetida, a verdade insofismável de que a história não se repete transforma-se no seu contrário, em sofisma. Agora mesmo, venais travestidos de vestais repisam que o Terror curitibano esconde uma guilhotina no porão e estamos todos com a cabeça a prêmio.
Como os legalistas querem deter os carrascos, os procuradores provincianos botam a carapuça, fingem que é boné frígio e entoam: somos todos jacobinos. A analogia é trapaceira porque não se passou nada que remotamente lembre a revolução francesa.
Logo, não há motivo real para reação a termidoriana ou o alarme moralista. O que há de palpável, isso sim, é o afã em desregulamentar o trabalho e cortar aposentadorias. O sofisma de fundo histórico é falsa ideologia: evoca um passado heroico para justificar tramoias no presente.
Assim, se na França tribunos da plebe vestiram as togas retóricas da República romana, políticos e procuradores brasileiros agitam o espectro do Terror para mobilizar crápulas tremebundos do pântano brasiliense. Fazem buuuuu para arrebatar aliados e trouxas. É má ficção, mas cola.
Para captar o presente, o melhor é ficar na ficção à vera. Não na nossa, pois não temos o romance do pai da pátria, subgênero ilustre nas letras latino-americanas. Nele estão "O Senhor Presidente", de Astúrias, "Eu o Supremo", de Roa Bastos, "O Recurso do Método", de Carpentier, "A Festa do Bode", de Vargas Llosa.
São bons romances do século 20, mas nenhum emparelha com "O Outono do Patriarca", de García Márquez. Ele levou ao desvario o ódio frio de um tirano tropical: o monstro estrebucha com as axilas rescendendo a cebolas velhas e uma hérnia no escroto do tamanho de um figo.
É com cadência fúnebre, com parágrafos letárgicos em prosa espessa, que "O Outono do Patriarca" fantasia a agonia de um ditador de República Banana. Há sentenças gélidas, compostas com drama e escárnio, que parecem delinear a solidão do patriarca ora no Planalto:
"Ninguém sabia senão ele que só lhe restavam nas frestas da memória uns quantos fiapos soltos dos vestígios do passado, estava só no mundo, surdo como um espelho, arrastando suas densas patas decrépitas por gabinetes sombrios." Lá vai ele, com sua dança de dedos neurótica.
O personagem brasileiro mais parecido com um pai da pátria é Don Porfírio Diaz, de "Terra em Transe". Ele não se encaixa bem no gênero porque o filme acaba no momento em que costumam começar os romances de ditadores –quando o patriarca entra em parafuso e seu poder se paralisa.
Paralisia é o mote de "O Outono do Patriarca". Um colapso fez com que o poder do déspota se esvanecesse. O país entorpece aos poucos. Os pássaros silenciam. Todos estão à espera. Aí tempo para. O romance prefigura o Brasil letárgico de nossos dias:
"Esperávamos o cumprimento de previsões antigas, que no dia da sua morte o lodo dos lamaçais havia de regressar pelos seus afluentes até as nascentes, que havia de chover sangue, que as galinhas poriam ovos pentagonais, que o silêncio e as trevas voltariam a se estabelecer no universo porque aquele havia de ser o fim da criação".
Paralisia é permanência: os países dos pais da pátria estão condenados a esperar. A paralisia perpétua imobiliza até os de eventos mágicos de "Cem Anos de Solidão", também de García Márquez, cujo meio século de publicação vem de ser comemorado.
Estão no romance os fatos brutos: a chegada dos estrangeiros; a exploração colonial; o massacre dos trabalhadores; as escaramuças contínuas entre conservadores e liberais para manter o status quo.
Alvíssaras: depois de uma chuva de quatro anos, 11 meses e dois dias virá a praga do esquecimento. Um vento varrerá o país e haveremos de esquecer que estamos à espera de não sabemos o quê. Restará apenas a silhueta do patriarca no Planalto.
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