02
de maio de 2012 | N° 17057
PAULO
SANT’ANA
Surras entre amantes
Uma
das cenas mais deprimentes mostradas pela televisão brasileira foi repetida na
semana passada à exaustão.
Um
pai, um homem possante, incomodado com um pequeno estrago que sua filha de nove
anos fez num aparelho doméstico, foi até o quintal da casa e espancou
cruelmente a criança, que se revirava mas era atingida violentamente pelo
homem, que não cessava a agressão por longos minutos.
Uma
vizinha filmou as cenas bárbaras e as entregou para a polícia. Durante o atroz
espancamento, a menina implorava dramaticamente: “Baixa a mão! Baixa a mão!”.
E o
pranto da menina encharcava o relho implacável do pai desnaturado.
O
pai foi preso, pagou fiança e acabou solto. A menina disse à polícia que, ainda
assim, queria muito bem a seu pai. As crianças perdoam porque são puras de
sentimentos.
No
mundo dos adultos, esta relação é mais complexa. O genial cronista Nelson
Rodrigues, num dos seus paroxismos costumeiros, provocou severamente seus
leitores, num pensamento célebre: “Toda mulher normal gosta de apanhar”.
É claro
que ele quis dizer serem frequentes surras que certos maridos impõem às suas
mulheres, nem por isso se separam e levam o casamento até a velhice.
Há um
certo ingrediente masoquista-sexual entre maridos e mulheres que por vezes
gostam de apanhar.
Há até
um desvio perverso da personalidade que só consegue orgasmo diante de um
pequeno sofrimento, um tapa, um puxão nos cabelos, um chupão no pescoço, uma
pequena mordida na orelha.
Ao
contrário do que afirmou Nelson Rodrigues, este é um comportamento pretensamente
anormal, mas se torna rotineiro e faz a delícia das atitudes sadomasoquistas.
Quando
eu era criança, nós, uns 20 meninos, na Rua 17 de Junho, bairro Menino Deus,
sentávamos na calçada todos os dias às 18h, quando sempre o açougueiro do lugar
era espancado por sua mulher, invariavelmente às 18h. Era a hora da ave-maria
debaixo da pauleira.
E nós
víamos esse espetáculo diário sem pagar ingresso e com hora marcada.
Um
dia, a surra da mulher excedeu-se a uma derrama teatral: ela saiu correndo atrás
do marido, que disparava no rumo da Avenida Getúlio Vargas.
A
mulher começara a surrar seu marido dentro do açougue, usando, pasmem, uma
manta de mondongo.
E
correu uma quadra inteira baixando laçaços de manta de mondongo sobre as costas
e cabeça do pobre açougueiro, que se defendia como podia dos golpes pesados da
dobradinha.
Ora,
um homem apanhar durante 30 anos, todos os dias, às seis da tarde, faz supor que
ama doentiamente sua mulher.
E
faz supor mais: que sem aquelas surras o sexo não teria sobrevivido, tampouco o
casamento do curioso açougueiro.
O
sexo entre homem e mulher compreende um desforço físico, uma fricção severa, e
não raro deriva para a pequena violência, que se derrama muitas vezes em
requintes de prazer.
Mas
daí a que o Nelson Rodrigues tenha afirmado em outras palavras, que só mulher
anormal não gosta de apanhar, isso que ele disse, além de causar revolta,
provoca polêmica perturbadora.
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