01
de maio de 2012 | 3h 08
ARNALDO
JABOR - O Estado de S.Paulo
Estamos todos na Avenida
Brasil
Não
perco um capítulo da novela Avenida Brasil. Ela chegou em boa (ou má) hora,
quando os escândalos em "cachoeira" revelam os intestinos de nossa
vida política. Essa novela é um fato novo, porque fala a espectadores da
chamada "classe C", essa nova categoria que surge com o crescimento
da economia.
Muitos
diziam: "Ah, classe C? Só veremos banalidades." Nada disso. Talvez
tenha acabado a luta pelo o ibope mostrando aos pobres as casas luxuosas de
Ipanema. Agora, trata-se da vida da classe média sob a influência moral dos
dias atuais. A trama dramática da novela se tece com personagens vitais do dia
a dia da maioria dos brasileiros.
E
isso torna os conflitos mais densos, mais gerais, mais profundos. A grande
qualidade de Avenida Brasil é a conexão entre um verdadeiro enredo de filme de
ação com uma aguda psicologia das personagens populares - que em geral eram
criadas como "tipos", apenas. Sem contar os grandes atores como
Débora Falabella, Vera Holtz, Murilo Benício e os outros todos. Há uma mutação
em curso no País e a novela toca nesse ponto.
A
psicopatia está virando o tema central de várias novelas recentes. Em Vale
Tudo, a mais antiga, tivemos o surgimento de Maria de Fátima, de Glória Pires,
a fundadora da psicopatia no ar; tivemos Flora, com Patrícia Pillar, tivemos
Tereza Cristina com Cristiane Torloni, tantas. E agora, Adriana Esteves genial
como a malvada da hora. Elas variaram entre uma maldade sutil e melíflua, como
Flora, até a brutal voracidade de Carminha.
E
essa vilãs traçam um retrato de nosso tempo - a psicopatia virou uma forma de
viver e de fazer política.
E
temos de confessar que as malvadas nos fascinam pela ausência de culpa em seus
corações. Na obra de João Emanuel Carneiro houve um diálogo que resume essa
doença "pós-utópica" muito bem - Carminha grita para Nina, que
chorava: "Não adianta querer me emocionar, porque eu não tenho pena de
ninguém - só de mim mesma!" Avenida Brasil tem uma importância cultural e
política. Antigamente, nos romances, nos filmes, nos identificávamos com as
vítimas; hoje, nos fascinamos com os cruéis. Não torcemos só pelos mocinhos - a
verdade é que os heróis são os canalhas. Por quê? Bem. Talvez os psicopatas
sejam o nosso futuro.
Com
a exposição de um escândalo por dia, de vampiros, gafanhotos, laranjas e
fantasmas, com a propaganda estimulando o sexo sem limites, com a ridícula
liberdade para irrelevâncias, temos o indivíduo absolutamente desamparado, sem
rumo ético. Isso leva a um narcisismo desabrido, que se torna um mecanismo de
defesa.
Diante
do espetáculo da violência, diante dos cadáveres da miséria, do cinismo
corrupto, somos levados a endurecer o coração, endurecer os olhos, para vencer
na vida competitiva ou seremos tirados "de linha" como um carro
velho. E aí surge o problema: Se não há um Mal claro, como seremos bons? O Mal
é sempre o 'outro'. Nunca somos nós. Ninguém diz, de fronte alta: "Eu sou
o mal!" Ou: "Muito prazer, Diabo de Oliveira..."
O
Bem está virando um luxo e o Mal uma necessidade 'comercial' de sobrevivência.
Viver é praticar o Mal. Quem é o Mal? O assaltante faminto ou o assaltado rico?
Ou nenhum dos dois? Antigamente, era mole. O Mal era o capitalismo e o Bem o
socialismo. Agora, os intelectuais, padres, bondosos profissionais, caridosos
de carteirinha, cafetões da miséria, santos oportunistas, articulistas (como
eu) estão todos em pânico. Ao denunciar o Mal, vivemos dele. Eu lucro sendo bom
e denunciando o Mal. Quanta violência sob a 'santidade',
A
loucura é histórica também. Já houve a histeria com a repressão sexual
vitoriana, houve o delírio romântico e totalitário, a paranoia do entreguerras.
Hoje, o psicopata veio para ficar. A novela acerta em cheio nessa doença.
É
fácil reconhecer o psicopata. Ele não é nervoso ou inseguro. Parece sadio e
simpático. Ele em geral tem encanto e inteligência, forjada no interesse sem
afetividade ou sem culpa para atrapalhar. Ele tem uma espantosa capacidade de
manipulação dos outros, pela mentira, sedução e, se precisar, chantagem.
Teremos agora a CPI dos psicopatas. Vai ser um show.
Questionado
ou flagrado, o psicopata não se responsabiliza por suas ações, sempre se
achando inocente ou "vítima" do mundo, do qual tem de se vingar. Ele,
em geral, não delira. Seus atos mais cruéis são justificados como naturais. Ele
não sente remorso nem vergonha do que faz (o que nos dá até certa inveja). Ele
mente compulsivamente e, muitas vezes, acredita na própria mentira. Não tem
"insights" nem aprende com a experiência, simplesmente porque acha
que não tem nada a aprender.
Os
chamados comportamentos "humanos" estão se esvaindo. O que é o
"humano" hoje? O "humano" está virando apenas um
lugar-comum para uma bondade politicamente correta, uma tarefa e (muitas vezes)
pretexto para ONGs.
O
"humano" é histórico também. Talvez não haja mais lugar para esse
conceito mutante. Somos 'máquinas desejantes' que se pervertem com o tempo e a
necessidade. Durante a ditadura, todos éramos o Bem. O Mal eram os milicos.
Acabou a dita e as "vítimas" (dela) pilharam o Estado. O que é o Bem
hoje? Como diz Baudrillard, "contra o Mal, só temos o fraco recurso dos
direitos humanos".
No
Brasil, o grande Mal, não tem importância. O perigo aqui é o pequeno mal,
enquistado nos estamentos, nos aparelhos sutis do Estado, nos seculares dogmas
jurídicos, nos crimes que são lei. O perigo são os pequenos psicopatas que,
quietinhos, nos roem a vida. Aqui, o perigo é o Bem. O Mal do Brasil não é a
infinita crueldade das elites sangrentas; o Mal está mais na sua cordialidade.
O Mal está no mínimo.
Como
nesta novela, vemos que o Brasil está se dividindo entre babacas e psicopatas.
Hoje, os babacas estão tentando seguir os psicopatas, por sua eficiência e
falta de escrúpulos. Em breve, seremos todos psicopatas.
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