sexta-feira, 7 de maio de 2010



07 de maio de 2010 | N° 16328
DAVID COIMBRA


Os meninos de Goiás

Vi pela tevê uma cena que me encravou uma pedra de sentimento na garganta, dias atrás. A pedra, de certa forma, já se desmanchou. A cena não. A cena ainda me lateja no cérebro.

Deu-se o seguinte: dois recém-nascidos foram trocados por engano em um hospital de Goiás. As mães saíram do lugar cada qual com seu menino, sem saber que aquele não era o seu menino. Passados alguns meses, um dos pais desconfiou: o nenê não se parecia em nada com ele. A fim de provar sua fidelidade, a mãe fez o teste de DNA. Aí explodiu a surpresa: o filho não era dele. Nem dela! Voltaram ao hospital e a confusão foi deslindada.

Então, depois de um ano do nascimento dos meninos, os dois pares de pais encontraram-se para destrocar os filhos. Emissoras de TV registraram a cena de que falo: as mães frente a frente, com os bebês nos braços, ambas aos prantos, aproximando-se devagar. Pararam, soluçando sempre. Hesitaram por um momento. E, em seguida, uma passou para a outra a criança por quem velara e a quem acarinhara e amamentara durante um ano inteiro. Nesse momento, percebendo que algo de errado se passava, os meninos romperam em choro.

Ao fundo, o pai que motivou a descoberta, magro, alto, a camisa abotoada até a última casa, óculos de aros finos, ele observava, mudo e tenso, decerto também engasgado com uma pedra de lágrimas que não há de se dissolver tão facilmente quanto a minha.

Pois eu, embora comovido com a tristeza da cena, consolei-me exatamente por algo que ela mostrou. É que ali, se houve comoção, houve também amor.

Faz toda a diferença. Aquelas crianças vão sofrer, já devem estar sofrendo, mas elas receberão amor. Há grande chance de que se transformem em adultos dignos, que respeitem os outros e que lhes deem amor também. Porque uma pessoa só pode dar algo que tem.

Se ela nunca recebeu amor, nunca recebeu respeito, nunca recebeu compaixão, não terá amor, respeito ou compaixão para dar. Não por acaso, esses bens fundamentais, amor, respeito e compaixão, são cada vez mais rarefeitos no Brasil.

Por quê?

Porque estão em falta no local que deveria ser sua fonte: a família. A crise de valores brasileira é a crise da família brasileira, desagregada, vulgar, mesquinha, dinheirista. Parece um problema insolúvel. Não é. A solução pode vir de fora para dentro. Pode vir da escola.

Sou obrigado a voltar a um tema que me tem sido recorrente, mas sinto que talvez devesse falar SÓ disso, e de mais nada. Porque é só o que importa. As crianças.

Elas é que importam. Uma educação básica de qualidade pode, sim, dar uma porção de dignidade a quem não tem.

Uma escola estruturada, com profissionais dedicados e bem remunerados, uma escola pequena, de bairro, onde o aluno entrasse antes do café da manhã e saísse depois do jantar, assistida por posto de polícia e posto de saúde, com biblioteca, quadras de esportes e assistente social, uma escola que permanecesse aberta dia e noite e que se integrasse à comunidade, essa escola poderia, de alguma forma, se transformar em uma grande família.

Poderia transformar em adultos decentes as crianças que passarem por contingências semelhantes à que se abateu sobre os dois meninos de Goiás.

Porque contingências ainda piores acontecem e continuarão acontecendo às crianças do Brasil. E, assim, as crianças do Brasil crescem sem amor, sem respeito, sem dignidade simplesmente porque, ao contrário dos meninos de Goiás, não possuem ninguém que também tenha amor, respeito e dignidade para lhes dar.

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