sábado, 22 de maio de 2010



23 de maio de 2010 | N° 16344
PAULO SANT’ANA


O mistério do sono

Um amigo desabafa comigo e diz que o único prazer que lhe resta é dormir.

Como pode ser bom dormir, penso com os meus botões, se quando se está dormindo nada se sente?

Que prazer é esse de alhear-se do mundo, mergulhar num sono que pode ser considerado uma morte passageira, uma fuga da vida?

Eu não tenho dúvida, aliás, de que os que procuram refugiar-se no sono estão fugindo de alguma coisa que só pode ser a vida.

Uma pessoa normal, que não esteja depressiva, só pode gostar do sono antes e depois de dormir.

Antes, como caminho, perspectiva e solução para o descanso. Depois, como dever de repouso cumprido.

Mas os depressivos detestam estar acordados, a vigília prolonga-lhes a aflição, o pesadelo de terem-se de encontrar com suas dificuldades.

O supremo ideal do depressivo é dormir e deixar para trás todas as suas preocupações. É só um adiamento.

Por sinal, vendo as crianças dormirem com aquela letargia, ocorre-me imaginar que as crianças dormem assim tão profunda e insistentemente porque não têm o que pensar, estão distantes de temer o futuro e não possuem ainda um passado para lamentar ou comemorar.

Por esse raciocínio, a vigília é própria dos que pensam no futuro e no passado, dos que têm do que se ocupar mentalmente.

E o sono, por conseguinte, é uma condição de paz e de tranquilidade.

Em estado de insônia ou fadiga, o homem se pune com as censuras que faz a si próprio, enquanto que, se adormecer, ele acalma a sua culpa.

O sono nada mais é, portanto, que um grande alívio.

Ao contrário, a vigília é um castigo. Manter-se acordado muitas vezes é autoinfligir-se uma condenação aflitiva, uma maneira de permanecer purgando as vicissitudes e as adversidades.

Nem dá para imaginar como seria a vida sem o sono, enfrentar o duro combate da existência sem nenhum intervalo provocaria uma existência cruciante. Ou a morte.

Do sono até a morte, o passo é pequeno. A natureza pode ter criado o sono para treinar as pessoas para a morte.

Quando não é crivado por sonhos, o sono é o nada, é o ingresso num vazio total de existência, um não ser, uma antivida, um armistício.

E, no entanto, o sono, por imposição natural, é um espaço de repouso físico e de folga para a consciência.

Como também o sono faz parte da vida, um homem de 60 anos terá passado 20 anos de sua vida dormindo. Parece, assim, um desperdício, mas a natureza deve ter tido razões sábias para obrigar o homem a dormir e para deixá-lo arrasado quando não consegue dormir.

E o que será que vem a ser um sono agitado ou a insônia, senão que a pessoa está se recusando a mergulhar no sono porque tem tantas coisas boas ou más para fazer na vida, que não poderia, assim, diante de tantos compromissos, ficar perdendo tempo a dormir.

Sobre o parentesco da morte com o sono, a melhor metáfora para mim é do compositor e jornalista Antônio Maria, que deixou para seu companheiro de quarto um recado escrito, antes de ir dormir: “Se eu estiver dormindo, deixa-me dormir. Se eu estiver morto, me acorda”.

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