02 DE JULHO DE 2024
CARPINEJAR
A trégua do inverno
Nunca um inverno foi tão aguardado. As temperaturas baixaram no Estado. Estão zeradas em algumas cidades como Caxias do Sul. Estão negativas em cidades como São José dos Ausentes. A capital gaúcha amanheceu com 2,4ºC ontem.
A neblina significa que não haverá chuva violenta, que não haverá enchente, que não precisaremos medir os rios com medo de seu transbordamento. Se perguntar a qualquer gaúcho o que ele prefere entre os extremos de nossa vida, o calor ou o inverno, dirá que é o frio.
Suportamos o gelo como uma condição inerente de nosso Pampa. O Minuano é a nossa segunda pele. Nossas melhores lembranças são desafiando o vento gelado da serra ou do campo. Nossos milagres se resumem a sempre ver a neve.
Temos mais apetite. Temos mais vontade de trabalhar chutando a geada. Sentimo-nos mais corajosos na estrada. Levantar cedo já é motivo de orgulho - proclamamos a todos que ainda era noite ao sair para o expediente. O chimarrão fica mais gostoso. A família se torna mais unida e próxima dentro de casa.
Este inverno é um antídoto da tragédia. Vai nos devolver um pouco a normalidade que perdemos nos últimos meses. Agirá como uma trégua para remontar as existências, uma suspensão provisória do pânico para colar os pedaços de nosso desamparo.
Recordaremos o prazer que é descascar uma bergamota, ou segurar uma xícara quente de café com ambas as mãos, deixando a fumaça banhar o rosto. Recordaremos a alegria que é procurar o lado do sol da calçada. Recordaremos chatices tão tolas como carregar os casacos na mão durante o almoço. Recordaremos arrependimentos ingênuos como o de não usar ceroula, negando o conselho dos pais, ou de não soprar as polentas antes de comer, queimando assim o céu da boca. Recordaremos o temor infantil das portas batendo. Recordaremos a nossa alergia e os longos espirros consecutivos diante da lã guardada.
Evocaremos invernos antigos em que nada nos ameaçava tanto. As meias que secávamos atrás da geladeira. O ritual de descer as roupas do alto do armário, de acumular edredons em cima da cama a ponto de não conseguir se mexer, de resgatar o poncho para passeios no domingo, de desenhar palavras engraçadas nos vidros traseiros dos carros dos amigos, de rezar para o chuveiro permanecer quente até o final do banho.
Seremos livres e espontâneos no ambiente doméstico, desfilando pantufas e sobreposição estranha de trajes, subjugando a elegância pelo conforto. Existirá também uma melancolia benéfica que nos permitirá ouvir canções tristes e milongas, para organizar as nossas emoções e pensamentos.
Pois a solidão não nos assusta, o recolhimento não nos intimida. Podemos nos sentar na janela para momentos de introversão, observando os movimentos lentos da natureza. Podemos aguentar o silêncio, desde que tenhamos nossa residência seca e intacta, protegida e salvaguardada da enxurrada do outono.
Neste inverno, vamos nos agasalhar de esperança. Que ela seja o começo de teto para 6.554 desabrigados. Que todo abraço passe a ser um cachecol. Vamos nos agasalhar de esperança. Que ela seja o começo de teto para 6.554 desabrigados. Que todo abraço passe a ser um cachecol
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