segunda-feira, 15 de julho de 2024



15 DE JULHO DE 2024
CLÁUDIA LAITANO

Catedrais

Sei o que todo mundo sabe sobre Theo Wiederspahn (1878-1952). Que era alemão e que construiu alguns dos prédios mais bonitos de Porto Alegre. Sobre sua vida pessoal, menos que nada. Espero que a família me perdoe por usá-lo aqui para ilustrar minha historinha, mas obras erguidas "tijolo com tijolo num desenho mágico" são, por natureza, as mais concretas. Digamos, continuando a fabulação, que Wiederspahn fosse um sujeito da pior espécie e que isso viesse à tona em 2024. O que vocês acham que aconteceria?

Primeiro as pessoas ficariam curiosas, depois chocadas e em seguida indignadas. Mas a certa altura o linchamento moral já não bastaria. Seria preciso atacar os prédios também. Abaixo a Casa de Cultura, o Margs, o Memorial, o Santander Cultural, o Edifício Ely... Alguém diria, meio a sério meio de brincadeira, que a única solução seria implodir logo com tudo. Mas antes que aparecesse uma incorporadora se voluntariando para executar essa nobre missão cívica surgiria um novo Judas (um ídolo, um gênio, um sujeito qualquer) soprando o vento da malhação para outro lado. Fim da história.

Artistas e suas obras têm sido queimados juntos na fogueira dos escândalos que hoje nascem e morrem em um ritmo difícil de acompanhar. Na semana passada, aconteceu com a escritora Alice Munro (1931-2024), quando sua filha mais nova revelou que sofreu abusos do padrasto na infância. Já adulta, quando contou para a mãe o que havia acontecido anos antes, a escritora decidiu não se separar do marido, atitude que a filha nunca perdoou. 

Alice Munro foi julgada como mulher, como mãe, como ser humano, de forma apressada, mas talvez inevitável. O que sempre me parece um erro é estender as falhas morais do ser humano para suas obras, como fizeram os que se apressaram a dizer que tinham perdido interesse em seus livros. No caso de uma autora como Alice Munro, é como dizer que uma catedral amanheceu menor por causa da Inquisição.

Em 1993, pouco depois de ficar sabendo que a filha havia sido abusada sem que ela percebesse, Munro publicou um conto intitulado Vândalos, incluído mais tarde no livro Falsos Segredos. Como todas as histórias da escritora que ganhou o Nobel em 2013, o conto se desenrola lentamente, até um desfecho brutal e de certa forma surpreendente. À luz do que ficamos sabendo nos últimos dias, o conto parece ter sido inspirado pelo drama familiar em que a autora estava envolvida naquele momento. Pode não ter servido como pedido de desculpas para a filha, mas, para os leitores, o que existe é a obra-prima. _

CLÁUDIA LAITANO

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