30/03/2024 - 11h00min
Letícia Paludo
Melhor juntas: mulheres aderem a grupos exclusivos de viagens para explorar destinos e formar laços de amizade
O público feminino tem encontrado liberdade e segurança a partir de roteiros ao lado de novas parceiras de estrada
Para quem quer viajar, mas não tem companhia e nem está a fim de se lançar em uma aventura solo, existem as excursões, é claro. Mas algumas viajantes e empreendedoras gaúchas entenderam que esse momento de lazer pode ser ainda mais especial se for feito em um grupo composto exclusivamente por mulheres. Nessa dinâmica, relatam que o que tende a acontecer é a liberdade para se soltar, falar besteira, desabafar e, de quebra, fazer conexões e amigas com quem possam viajar no futuro.
— É uma atmosfera de local seguro. Não tem aquela coisa de “Será que eu posso fazer essa piada?”, “Será que vão me interpretar mal?”. Entra justamente naquele lugar de “Isso aqui é uma irmandade, uma comunidade, posso ser eu mesma e está tudo bem”— afirma a empresária Letticia Gerhardt, 29 anos, criadora da agência de viagens Viaja Guria.
Moradora de Novo Hamburgo, Letticia costumava ser modelo plus size e criadora de conteúdo digital sobre autoestima. Há cerca de nove meses, organizou de forma despretensiosa um bate e volta para Bento Gonçalves, junto de amigas e seguidoras, e a ideia deu tão certo que acabou originando uma agência que oferece roteiros só para o público feminino. Já estiveram no Chile, na Argentina, fizeram um tour cervejeiro em Estância Velha e Igrejinha, um rafting em Três Coroas, acabaram de voltar de Recife e estão no Uruguai neste final de semana.
— Inicialmente pensei “Vou fazer essa viagem agora, daqui a três meses faço outro bate e volta e assim vai indo”. Só que a demanda começou a ser tão grande que antes de sair o primeiro roteiro, já tínhamos solicitação para o segundo, que lotou — recorda Letticia.
Os números mostram que a ideia está encontrando eco nas redes sociais: um dos primeiros vídeos publicados no Instagram teve mais de 600 mil visualizações e trouxe, de uma tacada só, cerca de 20 mil seguidoras para o perfil do Viaja Guria – no dia 24 de março, a página ultrapassou a marca de 100 mil seguidoras. O diferencial, segundo Letticia, é que a agência incentiva a formação de uma comunidade de mulheres que se apoiam e interagem antes, durante e depois do passeio. Ao fim da viagem, elas são convidadas para participar do grupo de mensagens Gurias Viajantes para trocarem ideias e marcarem rolês.
Até agora, a maioria das interessadas no Viaja Guria nasceu na década de 1990, com idades entre 25 e 34 anos, mas a lista também já recebeu passageiras com mais de 80 anos e costuma ter várias representantes entre 40 e 60 anos. Os motivos que as levam a procurar companhia feminina para viajar são variados, conforme descreve Letticia:
— Vai desde “Estou me divorciando” a “Preciso me reencontrar na vida”, questões de saúde mental, estar saindo de uma depressão, ansiedade social, entre outros. Há mulheres mais novas querendo ser mais independentes dos pais. Também tem o fato de não ter muitas amigas que compartilham da vontade de viajar, ficar só naquela coisa de “Vou ver e te aviso”, mas nunca avisa.
Acolhimento
No domingo (24), a reportagem de Donna acompanhou um bate e volta para a serra gaúcha na ideia de ouvir de perto os motivos que colocaram aquelas mulheres juntas e sentir o que acontece de melhor numa viagem em conjunto. De cara já dá para perceber que elas ficam à vontade para mostrar seu jeito. As que são mais tímidas são acolhidas tão bem quanto as que já entram no ônibus em altos decibéis.
No dia anterior, um grupo no WhatsApp foi criado para que fossem se conhecendo, o que talvez ajude a aproximar as passageiras desde o início do passeio. O ônibus parte às 8h da Capital, faz alguns embarques na Região Metropolitana e segue para Carlos Barbosa, onde a primeira parada é na Fetina de Formaio, uma loja de produtos coloniais. No local, as passageiras degustam iguarias como o salame de javali, queijo de azeitonas e tomate seco.
A segunda parada, em Garibaldi, no parque da Fenachamp, é reservada para almoço e para um dos momentos mais emocionantes e acolhedores do passeio, o da integração. Numa roda, elas explicam quem são e por que decidiram viajar na companhia uma da outra, e muitos dos relatos emocionam quem ouve e se identifica: há quem tenha vivido um burnout no trabalho e entendido que é preciso reservar tempo para desopilar, viajar, trazer novidades para a vida. Também há mulheres fartas daquela promessa entre amigos “Claro, vamos marcar sim” que nunca se concretiza.
Para boa parte das viajantes, o passeio coroa uma jornada de independência para ir e vir sem depender da família, dos amigos, do namorado, ou, ainda, celebra a libertação de um relacionamento abusivo.
A técnica em Enfermagem Tais da Silva, 47 anos, viaja com o grupo desde o primeiro roteiro lançado, na metade de 2023. Para ela, tem sido uma oportunidade para começar um novo círculo de amizades depois do fim de um casamento de 24 anos:
— Comecei a viajar para mudar meu rumo e minhas amizades. Estou na quinta viagem e tenho outras marcadas. É um investimento em mim e na minha felicidade. Viramos amigas, as gurias já foram na minha casa, comeram churrasco, tomaram banho de piscina, cuidamos uma da outra. É importante quando você consegue fortalecer a mulher que está contigo, fazer com que ela se conheça, perceba o quanto ela é importante. Aqui a gente não está sozinha nunca, é diferente de solidão, é solitude.
No caso da administradora Danielle Carrão, 41 anos, a maioria de suas amigas não é parceira para saídas – muitas são casadas, têm filhos e não podem contar com os companheiros para ficar com as crianças enquanto elas viajam, explica. No ano passado, Danielle descobriu o Viaja Guria e a companhia que estava faltando, e de lá para cá já viajou para Buenos Aires, Três Coroas e, agora, a serra gaúcha.
— Como meu marido fica com a minha filha, tenho esse suporte, consigo fazer os passeios. Vi neste grupo de mulheres a possibilidade de ter os meus momentos, aproveitar atividades sozinha, conhecer outras pessoas e experiências. Tem um acolhimento, a gente pode ficar à vontade, não precisa se preocupar com o que vai falar, o que vai fazer — detalha Danielle.
Fica evidente que o passeio oportuniza aquelas interações ricas entre gerações: desde adolescentes acompanhadas pela mãe até octogenárias. A mais veterana se apresenta como Vó Nita e seu bom humor faz com que, de fato, se torne avó de todo o grupo ao longo do dia. Natural de São José do Norte, a aposentada foi ao passeio por iniciativa da neta.
— Sou uma costureira aposentada de 88 anos e gosto de sair um pouco. Estou adorando a turma, espero fazer algumas amigas — projeta Enilta Costa da Costa, com a voz bem alta para ser ouvida em meio ao ruído da queda d’água de 56 metros do Salto Ventoso, em Farroupilha.
Vó Nita ainda faz a alegria geral da mulherada durante a degustação de vinhos e espumantes da Vitivinícola Cave Antiga, a última parada do roteiro, também em Farroupilha. Depois de algumas taças, Enilta se levanta e fica num pé só – o clássico “fazer o quatro” – mostrando que ainda tem equilíbrio sob aplausos e risadas.
O gesto é um exemplo do astral que toma conta das mulheres ao longo do passeio: não há espaço para ficar se perguntando se vai “pegar bem” fazer tal brincadeira, contar uma besteira, pedir mais uma taça de espumante, rir alto, posar para fotos.
— Não é só a viagem, é também a comunidade. Aqui é sem cobrança, julgamento, olhar tóxico. A gente se abre muito mais fácil porque ninguém vai ficar cuidando como está a sua roupa, o que você fez, se já casou, se é solteira, quem você é. É só se juntar, se divertir e se apoiar — afirma a engenheira química Janaína Junges, 42 anos, que se juntou ao grupo em fevereiro, no rafting de Três Coroas.
De 2005 até 2021, a proprietária da agência de Sapiranga Tri Viagens, Fernanda Fülber, fez incontáveis saídas com grupos mistos de até 30 pessoas. As coisas começaram a mudar quando se deu conta de que seu público era 90% feminino e que os poucos casais heterossexuais que iam nas viagens acabavam ficando destacados do grande grupo, não vivendo a mesma experiência de conexão que os demais passageiros.
— E quando juntava todo mundo, as mulheres que não estavam acompanhadas ficavam com um pé atrás, se resguardavam. Fui percebendo que elas se divertiam muito mais quando estavam só entre amigas, aproveitam melhor os destinos. Não é que não gostassem da presença dos homens, não tem nada a ver com isso, mas elas ficavam mais acuadas. Em 2021, resolvi segmentar só para pequenos grupos de mulheres, pois é o que dava mais certo – conta a empresária de 43 anos.
Assim nasceu o Mulheres no Mundo, que se propõe a fazer principalmente destinos internacionais com grupos de no máximo 15 integrantes. Quando atende o telefone para conversar com Donna, Fernanda acaba de aterrissar de uma viagem de oito dias no Chile, com 10 mulheres. Elas conheceram o deserto do Atacama, passando por Santiago do Chile, Calama e San Pedro de Atacama.
— Quando o grupo é pequeno, o entrosamento é maravilhoso. Você volta da viagem sabendo o nome e a história de cada uma, formam-se grupos muito unidos de amizade. Nesta última ida ao Atacama, ao cadastrar as informações das passageiras vi que duas moravam na mesma rua, mas não se conheciam. De propósito coloquei as duas no mesmo quarto e se deram muito bem. Na volta, disseram “Nossa, além de tudo agora vou ter uma vizinha para tomar um chimarrão” – relata a empresária.
Em pouco mais de três anos de existência, o Mulheres no Mundo já fez roteiros em lugares como Peru, Mendoza na Argentina, Bélgica e Holanda, Punta Cana, República Dominicana, Egito e Dubai. Viajar em grupo também é uma solução para se preocupar menos e se sentir mais segura em países estrangeiros onde as mulheres são mais oprimidas, os quais tendem a ser mais perigosos para as turistas.
— Alguns lugares que, apesar da cultura muçulmana ser um pouco mais rígida, estão acostumados com turistas dá para ir sozinha. Mas o bom de fazer em grupo é que você já sai do Brasil com tudo montado, os passeios agendados, com companheiras de viagem e suporte, então é só se preocupar em se divertir. Nossos roteiros são todos privados, então se chegamos ao Peru, por exemplo, vamos ter um carro com um motorista e guia só para nós — diz Fernanda.
Também não quer dizer que corra tudo às mil maravilhas só porque não há presença masculina. Um dos maiores desafios em grupo e especialmente nas viagens mais longas, explica a empresária, é justamente manter o bom humor e aceitar que uma viajante é mais acelerada, outra é mais tranquila, e que essas individualidades podem conviver. Já aquele ditado infame que diz que “muita mulher junto não dá certo”, na opinião de Fernanda, não poderia ser mais falso:
— A conexão entre as mulheres é um negócio que realmente me deixa de queixo caído, é a coisa mais bonita de se ver. Muitas vezes me surpreendo, penso “Fulana não vai se dar bem com sicrana” e quando me dou por conta estão lá juntas. O mais mágico é a conexão, a ajuda e a proteção entre elas, ao estilo “Vai naquela loja ali porque o cara dá um desconto. Te levo ali” Ou então “Oh, vamos esperar um pouquinho porque fulana foi ao banheiro”. É amizade. Se torna um grupo de amigas.
De viagem marcada para Bélgica e Holanda no próximo 13 de abril, com 10 passageiras, Fernanda deixa um recado para quem tem vontade de dar seus pulinhos pelo mundo, mas ainda não fez por receio ou falta de parceria.
— Para mim a questão é muito simples, ou você viaja ou não viaja. Só que não viajando, você fica presa no seu mundo, sempre pensando “Como teria sido se eu tivesse embarcado nessa?”. Então minha dica é se dê uma chance de conhecer o mundo e fazer novas amizades — recomenda a empresária.