quarta-feira, 9 de outubro de 2019


09 DE OUTUBRO DE 2019
PEDRO GONZAGA

Melodia



O teatro estava lotado. Formavam-se não sei que formandos, a mim cabia cruzar a plateia pela escada central, tocando no sax o tema de Carruagens de Fogo. À medida que se vai descendo na carreira (suponho qualquer carreira) negar um pedido se torna um luxo. Permitam-me uma ofensa branda, mas eta música besta. Sugeri outras melodias famosas, sem sucesso. As moças da comissão estavam convencidas do alto poder de motivação da escolha. Restou-me levar tal empolgação àqueles corações humanos, que estavam mais ocupados com as próprias imagens no telão.

Tempos depois, apareceu-me uma cerimônia de casamento, cachê cintilante. Na reunião preparatória, o noivo disse que queria entrar ao som da abertura do Missão Impossível. Olhei para a noiva. Ela deu de ombros e disse já ter sido uma vitória convencê-lo a não simular uma fuga pela nave. Apelei ao bom senso, mas confiar que as pessoas tenham bom senso, francamente. Salvou-me o padre, um servo de Deus e do bom gosto, proibindo tal patuscada. O Tom Cruise falou até em adiar a festa, mas se contentou com um Roberto Carlos que a sogra escolheu.

Como eu disse, a cada novo rebaixamento na carreira, menor a dignidade. Certa vez, um colega meu de sax, que trabalhava com telemensagens, tocou para uma mulher em pleno serviço, à encomenda do namorado, o clássico do Sérgio Reis, Panela Velha. Teve de ouvir que coroa era a mãe.

Quando sinto saudades de ser músico - e sinto -, penso nos pedidos das gentes, no que ainda me caberia tocar não tivesse desertado. Não há fundo se aceitamos o poder de um sonoro e ativo sim conjugado a um silencioso e passivo não. Por isso, não deixo de me surpreender com os gênios de outras eras, que, sob rígidas encomendas, criaram obras-primas da liberdade do espírito humano.

No entanto, é preciso dizer que mesmo a mais singela melodia, independentemente de adequação e qualidade, é algum milagre, se nela acreditamos. O mal está em tocar o que não se quer, apenas para cumprir uma demanda, para pessoas que pedem músicas que não escutam de fato. Isso leva a uma descrença, hoje espalhada como norma por quase toda a parte. E se pudéssemos tocar sempre fiéis e ouvirmos sempre comunitários, sem nos esquecermos do que uma melodia pode fazer, de como ela é capaz de ressurgir a um mero estímulo? Pensem na parte nananada de Hey Jude.

Só os afetos se instalam assim tão intimamente em nós.

PEDRO GONZAGA

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