segunda-feira, 7 de outubro de 2019


07 DE OUTUBRO DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

Memórias do tempo das milícias


Houve época em que a palavra "milícia" era associada a quem combatia o crime - e não a quem vivia dele. Era o tempo do imperador (1852), e um rapazote chamado Manuel Antônio de Almeida começou a publicar no jornal carioca Correio Mercantil o folhetim que daria origem ao romance Memórias de um Sargento de Milícias - que por sua vez se passa "no tempo do rei", ou seja, entre 1808 e 1822.

Escrito com a espontaneidade de quem estava protegido pelo anonimato e com o franco objetivo de divertir seus leitores, Memórias de um Sargento de Milícias tornou-se um retrato vivo e saboroso do Brasil do século 19 - ainda hoje muito útil para quem se dedica a estudar a vida cotidiana naquele período.

A mais importante análise do livro seria escrita quase um século depois. No ensaio Dialética da Malandragem (1970), o crítico Antonio Candido mostra como os personagens do romance oscilam, sem culpa, entre a ordem (a lei) e a desordem (a farsa, o jeitinho, a corrupção, o crime). A começar pelo personagem principal, Leonardo, o sargento de milícias do título, típico gaiato folgado que sempre se dá bem e nunca sente remorso. Mais do que a análise literária propriamente dita, Candido extraiu do romance uma interpretação profunda e original sobre o modo como as coisas funcionavam (ou funcionam) no país em que "tutto è burla".

Arqui-inimigo de Leonardo, o personagem major Vidigal pode parecer curiosamente familiar aos leitores de hoje em dia. Vidigal era o mandachuva do pedaço, o "árbitro absoluto" que não apenas caçava os criminosos pelas ruas do Rio de Janeiro como julgava e distribuía as penas.

Passamos boa parte da história sendo convencidos de que Vidigal era uma espécie de paladino da lei e dos bons costumes. Até que, por interesses pessoais não muito nobres, o personagem acaba entregando-se sem culpa à desordem que dizia combater.

Baseado em um personagem real do século 19, Vidigal parece ter inspirado toda uma linhagem de falsos moralistas do século 21. Alguns deles, diga-se, aproximando-se perigosamente daquilo que hoje conhecemos como milícia.

CLÁUDIA LAITANO

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