terça-feira, 1 de outubro de 2019


01 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR

Uma mãe menina

Aquilo me marcou para sempre. Estudava em escola pública. Fizemos arrecadação de alimentos para um orfanato do bairro.


No dia da visita, roubei uma boneca da minha irmã Carla para entregar a uma das crianças. Escondi em minha mochila. Procurei alguma que ela não estivesse usando, empoeirada, em cima do armário.

A professora explicou que conheceríamos um lar de transição, de meninos e meninas sem pai nem mãe, que ainda seriam adotados por uma nova família. Jogaríamos futebol, vôlei, brincaríamos no pátio, trocaríamos os nossos sorrisos.

Foi quando conheci Mirela, de seis anos, olhos negros, com tranças longas e um jeito tímido e abafado de conversar. Eu era dois anos mais velho. Não consegui descobrir muito dela, a não ser que gostava de desenhar árvores, a ponto de ultrapassar o tamanho da folha. Ela me mostrou um desenho, onde via apenas um tronco marrom ocupando inteiramente a página em branco. A copa e as folhas não apareciam. A árvore chegava até o céu, de acordo com a sua lógica.

Entreguei o presente para ela, cuidando para não ser visto. Ninguém falou que não poderíamos entregar lembranças, mas ninguém também tinha falado que poderíamos. Não quis puxar o assunto com a professora e sofrer uma possível censura.

Na hora em que eu dei a boneca, ela me devolveu, daí eu dei de novo, e ela me devolveu de novo, até que eu dei e saí correndo. Ficou um empurra-empurra estranho, finalizado porque fugi e não possibilitei mais proximidade para outra devolução.

Evidente que a minha "sora" descobriu, três dias depois, por um evento incomum no orfanato.

Mirela dormiu no chão na noite seguinte à nossa visita, encontrada no piso frio do inverno, encolhida, usando os sapatos de travesseiro. A orientadora do lar deduziu que a queda havia sido provocada por algum pesadelo ou medo de um monstro. Não desconsiderou a hipótese de bullying de seus colegas.

Mas não. Mirela explicou que ofereceu a sua cama quente e seus cobertores fofos para a boneca.

A boneca ficou deitada em seu colchão, enquanto ela se recolheu ao piso. De tanto que gostou do brinquedo, cedeu o que possuía de mais valioso.

Montou um berço para a sua filha recém-chegada. Zelou os cabelos dela. Arrancou dentro de si a mãe que nunca teve na vida para criar um ventre de pano.

Tão franzina, tão pequena, Mirela não fez nenhuma loucura. Fez com a boneca o que sempre sonhou para si.

CARPINEJAR

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