terça-feira, 3 de setembro de 2019


03 DE SETEMBRO DE 2019
CARLOS GERBASE

Uma pedra de gelo


O playboy enfiou o dedo no copo baixo que abrigava duas doses de uísque 18 anos e mexeu as pedras de gelo. Gostaria que fossem redondas como nos drinques da noite anterior, em festa exclusiva na casa do tio, empresário do ramo hoteleiro. Mas agora, cercado por amigos e ao lado da namorada, estava num camarote da Rua Coberta, em Gramado, para assistir aos artistas que passariam pelo tapete vermelho rumo à noite de encerramento do Festival de Cinema. 

O playboy não curtia muito ver filmes. Brasileiros, então, nem pensar. Mas a namorada, de longuíssimos cílios postiços, fizera questão de estar ali para exibir seu novo casaco de pele, que as amigas chamariam de cinematográfico se o vocabulário da turma fosse menos limitado.

Depois de tomar um gole generoso de uísque, que aqueceu sua garganta e anuviou seu cérebro, o playboy viu que, em vez de atrizes tão glamourosas quanto a sua namorada, uma turba de pessoas comuns caminhava pelo tapete vermelho, com pequenos cartazes de filmes, gritando: "Pelo cinema, pela cultura, por uma arte livre e sem censura!". 

Tantas obscenidades provocaram um curto-circuito na mente do playboy, que imediatamente pegou a maior pedra de gelo do copo e a arremessou na direção de um dos manifestantes. A pedra começou a descrever uma trajetória certeira, mas, de repente, coisas estranhas aconteceram. Os cílios da namorada caíram e seu casaco apodreceu, enquanto o uísque 18 anos transformava-se em urina.

A Rua Coberta desapareceu. Os bares foram substituídos por casas de madeira, algumas delas tomadas por cupins. Quando a pedra de gelo estava prestes a tocar a testa do manifestante, seu tio apareceu, furioso, bem à sua frente, e gritou: "Idiota! O que tu fez? Esses caras colocaram Gramado no mapa do turismo brasileiro e internacional! Meus hotéis e meus restaurantes estão virando pó!" O playboy fez um esforço para compreender o que o tio estava dizendo, mas era tarde demais. A pedra atingiu o manifestante.

O Palácio dos Festivais foi tragado por uma cerração pesada, que logo envolveu o Hotel Serra Azul, as lojas próximas, a cidade inteira. O tio do playboy berrou: "Vai lá e pede desculpas, imbecil!", e empurrou o sobrinho pra dentro da cerração. O playboy, claudicante, deu dois passos e viu que o manifestante tentava proteger uma criança de colo de outras pedras de gelo que riscavam o nevoeiro. 

O tio que se arranjasse, pensou. Jamais pediria desculpas. Resolveu tomar um gole de uísque pra se aquecer. Quando a urina desceu como ácido pela sua garganta, uma pontinha de consciência apareceu em sua mente. O tio, espumando de raiva, empurrou-o mais uma vez. O playboy embrenhou-se definitivamente na cerração e, até agora, ninguém sabe de seu paradeiro.

CARLOS GERBASE

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